Quem morre no hospital é tratado como se tivesse covid-19. Funerárias pedem mais regras

Agentes funerários querem práticas iguais em todo o sector para combater a pandemia. Associação vai pedir que a DGS providencie testes semanais aos seus trabalhadores.

Foto
Em Barcelona, um trabalhador de uma funerária confirma os nomes dos mortos por covid-19 Reuters/NACHO DOCE

Os doentes que morrem nos hospitais, mesmo que a causa não seja covid-19, “estão a ser todos tratados da mesma forma”: corpo colocado em duplo saco e sem roupa pelos enfermeiros, condicionado, numa urna fechada, sem os familiares se poderem despedir. À partida, são todos suspeitos. “Não sabemos se as pessoas, que morreram por enfarte ou por outra causa, estão infectadas, porque não lhes estamos a fazer testes”, explica Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros (OE), ao PÚBLICO. Embora muitas agências funerárias estejam a generalizar estes procedimentos, para impedir a propagação da pandemia, nem todas o estão a fazer, por isso, pedem recomendações e testes para os agentes funerários.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Os doentes que morrem nos hospitais, mesmo que a causa não seja covid-19, “estão a ser todos tratados da mesma forma”: corpo colocado em duplo saco e sem roupa pelos enfermeiros, condicionado, numa urna fechada, sem os familiares se poderem despedir. À partida, são todos suspeitos. “Não sabemos se as pessoas, que morreram por enfarte ou por outra causa, estão infectadas, porque não lhes estamos a fazer testes”, explica Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros (OE), ao PÚBLICO. Embora muitas agências funerárias estejam a generalizar estes procedimentos, para impedir a propagação da pandemia, nem todas o estão a fazer, por isso, pedem recomendações e testes para os agentes funerários.

A Direcção-Geral de Saúde (DGS) recomenda que “não deve haver lugar à preparação do corpo de pessoas infectadas ou suspeitas de covid-19 pelas agências funerárias, dado que já foi preparado (limpo e seco) pela equipa de saúde/autópsia”, ou seja, os enfermeiros. Recomenda ainda o mínimo manuseamento e a cremação dos corpos e determina que, em caso de enterro, as urnas não sejam abertas. “Antes da covid-19, o corpo era preparado, vestido, e apresentado na urna, na igreja ou capela, para velório”, mas agora não é assim por causa do risco de contágio, descreve Carlos Almeida, presidente Associação Nacional de Empresas Lutosas (ANEL). 

A urna é fechada na casa mortuária e transportada para o cemitério ou crematório, onde apenas cinco ou dez pessoas podem assistir a uma breve cerimónia fúnebre. A representante dos enfermeiros concorda que “as medidas da DGS são necessárias para conter a propagação do vírus”, mas considera-as “desumanas”. No entanto, nem todos os agentes funerários seguem os mesmos passos, alerta Vítor Cristão, vice-presidente da Associação dos Agentes Funerários de Portugal (AAFP). 

Depende muito dos hospitais, explica o agente funerário José Silva, da área de Santo Tirso e Vila Nova de Famalicão, que já recolheu um corpo, no hospital, de uma pessoa que morreu por outra causa que não covid-19 e fez o procedimento habitual: “Fiz a higienização e vesti a pessoa que foi a sepultar no cemitério com dez familiares, que mantiveram o distanciamento social.” Este profissional também já transportou ao crematório um doente de covid-19, mas os familiares “ficaram em isolamento social em casa”, lembra. 

Para haver normas gerais no sector, a AAFP vai solicitar à DGS que, tendo em conta o risco de contágio, alargue a todos os óbitos os procedimentos que são exclusivos para pessoas que morreram vítimas de coronovírus, para evitar a propagação da pandemia, informa Vítor Cristão ao PÚBLICO, no final de uma reunião da direcção, este fim-de-semana.

“Existe o período de incubação do vírus e há pessoas assintomáticas. Logo, quando vamos buscar o cadáver, não temos a certeza se a pessoa que morreu, no hospital, por outra doença, contraiu o vírus ou não”, argumenta, defendendo o mínimo manuseamento dos cadáveres nesta altura de pandemia e pedindo que a DGS providencie testes semanais aos agentes funerários que “podem já estar infectados sem saberem”.

Contactada, fonte da DGS afirma que o organismo já reuniu com os agentes funerários e que as recomendações serão “actualizadas”. Relativamente ao pedido de testes, não há ainda uma resposta oficial. Em todo o país existem cerca de seis mil trabalhadores neste sector, informa o vice-presidente da AAFP.

E quem morre em casa?

À bastonária da OE “chegam relatos dos enfermeiros de que todos os óbitos estão a ser tratados por igual, nos hospitais de todo o país, independentemente da causa da morte”. Os enfermeiros são as últimas pessoas a vê-los quando fazem os cuidados post-mortem e “o que custa mais é esta desumanização da morte, o distanciamento das famílias, não as podermos confortar como antes”, confessa ao PÚBLICO Ana Rita Cavaco, considerando “terrível para o processo de luto e de perda, as famílias não poderem despedir-se porque o caixão está fechado”.

O presidente da ANEL acrescenta que, no caso de morte no domicílio, também deixou de ser feito o tratamento do corpo. “Vamos todos equipados com roupa, luvas e máscara de protecção individual, porque a pessoa pode estar infectada e ninguém saber”, justifica Carlos Almeida. Vítor Cristão queixa-se que os profissionais de última linha — os agentes funerários, os coveiros, etc. — estão a ser esquecidos. 

Por isso, há hospitais e agências funerárias que preferem não arriscar, mesmo sabendo que as recomendações da DGS são exclusivas para a covid-19. É o caso da ANEL que já tinha dado orientações aos associados para que considerassem todos os óbitos hospitalares como “potencialmente infectados”, através de um guião com “um conjunto de precauções padrão para o sector funerário”, lê-se no site da associação. 

Não sendo obrigatório o procedimento com corpos “não covid-19”, Vítor Cristão tenta “sensibilizar os familiares para o problema de contágio, deixando ao seu critério” se o morto é ou não vestido e se o caixão vai ou não fechado a sepultar ou para o crematório, resume. 

Risco nas autópsias e velórios

Também as autópsias são desaconselhadas nos casos suspeitos ou confirmados de covid-19, assim como qualquer tipo de manuseamento do cadáver. “Há um grande risco para a saúde pública, porque ainda não se sabe qual é a persistência e a durabilidade do vírus”, elucida Ricardo Dinis, presidente da Associação Portuguesa de Ciências Forenses. “Se for indispensável realizar nos casos de morte violenta, faz sentido enviar zaragatoas para um laboratório local, por forma a aferir se o cadáver é eventualmente covid-19 positivo”, resume.

Também os velórios têm sido outro problema porque há familiares que insistem na sua realização, conta Carlos Almeida, lamentando que ainda haja funerárias a organizá-los. No seu caso, não os faz: “Não sou insensível. Percebo que, não vendo o cadáver, é um luto inacabado, mas não posso atender ao pedido, porque a partir daqui o problema já são os vivos, o contágio entre eles.

Ainda que se possa “acompanhar o funeral, rezar junto da urna no cemitério, não se pode ir à igreja, nem fazer a cerimónia religiosa, que ajuda a dar sentido à despedida e à morte”, refere o padre Fernando Sampaio, coordenador nacional das capelanias. “Há algumas pessoas, que vão a sepultar, que não têm ninguém no cemitério. Isso é muito desumano”, lamenta o capelão no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, considerando “dramático não nos despedirmos de quem parte, porque afecta o modo como se faz o luto”. Mais, acredita: “Pode gerar uma impotência nas pessoas que acabam por se culpabilizar por não terem feito isto ou aquilo.”

A não despedida do ente querido pode “provocar uma sensação muito forte de impotência, solidão, desespero nos sobreviventes, porque querem despedir-se, mas não podem”, sublinha o psicólogo José Carlos Rocha, do Centro de Psicologia do Trauma e Luto, realçando que “a morte, só por si, já é um processo violento para muitas pessoas”. O psicólogo receia que os sintomas de luto, como a sensação de tristeza, solidão, perda de apetite, dificuldades no sono, desespero, recordações muito intensas, possam ser ampliadas, porque “o amortecimento e o suporte que o contacto social permite não vai existir e talvez seja mais difícil ultrapassar a perda”.

Segundo José Carlos Rocha, que faz parte da equipa da linha de apoio de aconselhamento psicológico, existe a “agravante” do distanciamento social e as viagens estarem limitadas, o que leva a uma “sensação de impotência entre os que não podem estar com a pessoa que morreu e com a restante família para a confortar”. Por isso, “cada um deve tentar que este processo de luto seja o mais respeitoso possível e encontrar outras estratégias” para o tornar menos doloroso, por exemplo organizando uma cerimónia de homenagem por videoconferência, com os mais próximos ou programar uma cerimónia para mais tarde. É o que tem feito o padre Fernando Sampaio: cerimónias na internet para conforto dos familiares.