Covid-19: Uma pandemia versus uma “paperdemia”

A covid-19 fez disparar uma disseminação viral paralela, com uma ciência que varia entre robusta e desonesta, a ser conduzida, divulgada e partilhada a uma velocidade e quantidade sem precedentes.

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Reuters/FABRIZIO BENSCH

A investigação científica, relacionada com a covid-19, já é um caso raro na ciência. Os artigos científicos são publicados a cada minuto, em revistas de alto índice impacto, demonstrando que este é um tópico quente entre todos os players das publicações científicas. Noutra perspetiva, a covid-19 fez disparar uma disseminação viral paralela, com uma ciência que varia entre robusta e desonesta, a ser conduzida, divulgada e partilhada a uma velocidade e quantidade sem precedentes.

A verdade é que, em vários casos, o conteúdo dos artigos científicos, em circunstâncias normais, teria apenas lugar em publicações predadoras. Tal parece óbvio, até porque o tempo que tem mediado entre a submissão e a aceitação de vários artigos, não passa de alguns dias. Portanto, torna-se evidente que a revisão por pares, este escudo cultivado por décadas na ciência, tem sido em vários casos, posto de parte.

Nos investigadores mais idóneos surge um conflito interior de difícil explicação. Se, por um lado, fomos sempre habituados a confiar e a valorizar a investigação científica e a estimulá-la juntos dos estudantes, também não deixa de ser verdade alguma deceção com o papel desempenhado por algumas revistas científicas, que aceitam divulgar resultados apressados, especulações e estudos com ausência notória de sustentabilidade. A revisão por pares nunca foi tão valiosa e nunca esteve tão doente.

A ciência e a pressão para publicar estão no auge e, sobre isso, já tive oportunidade de refletir anteriormente (ver The inherent drawbacks of the pressure to publish in health sciences: good or bad science). Porém, neste momento crítico das nossas vidas e da nossa sociedade, as revistas científicas, com elevado fator de impacto, e indexadas às melhores bases de dados da medicina, não devem deixar os investigadores e os clínicos desprotegidos de ciência confiável.

As revistas científicas são uma das últimas fortalezas que temos para uma medicina baseada na evidência, fazendo uso consciente, explícito, criterioso e razoável dos conhecimentos mais modernos na tomada de decisões, por exemplo, as de natureza de diagnóstico e terapêutica. A quantidade de fármacos que têm sido apelidados de milagrosos e prometedores para o tratamento da covid-19 é avassaladora, e todos os que fazem ciência com integridade, percebem que não se produzem resultados a essa speed science.

Está claro que são tempos especiais e precisamos de resultados rápidos para salvar vidas, mas aceitar publicar de tudo não ajuda a medicina, muito pelo contrário. Reduzir o rigor não trará nenhum benefício e é importante que as revistas científicas permaneçam firmes e focadas em garantir a qualidade.

Para além do papel crítico das editoras científicas, as plataformas de pré-publicação que disponibilizam os conhecidos preprints, permitem que as informações científicas sejam difundidas sem grande escrutínio, com inevitáveis riscos significativos associados. Não esquecer que muitos investigadores já reconhecem um comportamento fraudulento, cujas consequências económicas e sociais podem ser impressionantes.

Assistimos, por isso, a um conflito entre o valor da verdade em ciência e a progressão científica e académica, e o acesso a financiamentos para projetos científicos baseados nas métricas de avaliação dos investigadores e das instituições. Parece assim pertinente relembrar, os valores que o European Code of Conduct for Research Integrity considera que devem ser estimulados em quem faz ciência: honestidade, confiabilidade, respeito e responsabilidade. Por outras palavras, é importante combater a falsificação, a fabricação e o plágio (conhecido pela sigla FFP), e prevenir e educar para a ciência séria.

Além do desperdício financeiro direto, resultante de má conduta científica e académica, as implicações negativas são muito amplas para toda a sociedade. Não devemos esquecer que os resultados dos estudos científicos, frequentemente induzem mudanças em intervenções médicas, como casos de subvacinação. Na verdade, em 1999, o médico Andrew Wakefield publicou, numa das melhores revistas científicas (The Lancet), o artigo que invocava relação entre a vacina tripla (VASPR) e o autismo. Foram precisos 11 anos para que, em 2010, o artigo fosse considerado fraude, embora até hoje molde várias tomadas de decisão em medicina. Além disso, gera também uma descrença nos cientistas e na investigação científica, pelo que a cultura de “publicar na covid-19 a qualquer custo” deve ser largamente reprimida.

Na qualidade de professor universitário e de editor de revistas científicas, que gosta de Ciência e estuda a própria ciência e a bibliometria, considero que a importância da integridade científica e académica durante a crise da covid-19 é mais imprescindível do que nunca. Fica o alerta, particularmente para os profissionais de saúde, especialmente para os médicos e especialistas forenses, que devem ler com atenção os artigos científicos, numa perspetiva crítica e evitando a confiança cega, mesmo que os resultados tenham sido publicados em revistas de topo científico.

Será fundamental que os investigadores, académicos, instituições e decisores políticos, estimulem e procurem garantir a integridade científica, bem como a segurança dos participantes nos estudos realizados durante a pandemia.

Uma pandemia com uma “paperdemia” é será ainda mais complicada de gerir se progredir descontrolada e não devidamente escrutinada.

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