A infecção por covid-19 deixou-nos a morrer sozinhos

Nunca foi fácil lidar com a morte. E deve ser por isso que passamos a vida a fingir que somos imortais. Mas também nunca foi tão difícil como agora.

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Em Barcelona, os caixões acumulam-se no parque de estacionamente de uma funerária LUSA/Quique Garcia / POOL

Habitualmente começamos a perceber que os complexos que marcam o batimento cardíaco vão ficando cada vez mais espaçados e desligamos os alarmes do monitor. Se a família estiver presente, não queremos que os momentos finais da despedida sejam marcados por barulhos estridentes e inadequados. Nos casos em que, por qualquer razão, a família não pode estar, há um de nós que toma o seu lugar e segura a mão do doente. Não deixamos que ninguém morra sozinho.

Perdi a conta ao número de doentes que acompanhei nos momentos finais de vida e tampouco sei quantas vezes prestei cuidados aos corpos no pós-morte imediato. Foram centenas. Mas nem assim deixa de doer. Independentemente dos anos de experiência e do número de mortos no cemitério pessoal de cada um, nunca vi ninguém prestar cuidados a um corpo sem vida de ânimo leve. É claro que nos defendemos, é claro que erguemos algumas barreiras... Até porque seria impossível caminharmos com tantos mortos nas costas. Ainda assim, a morte de um doente que fizemos tudo para salvar será sempre um processo doloroso.

E porque é que escrevo sobre isto hoje? Porque recebi no email a norma da Direcção-Geral da Saúde relativa aos cuidados post mortem em doentes infectados por SARS-CoV-2 e fiquei com o coração do tamanho de uma noz. Não que a norma não esteja perfeitamente redigida ou que lhe detecte alguma falha do ponto de vista científico, mas esta norma é a prova de que este vírus nos roubou mais do que a liberdade. Este vírus roubou-nos o direito a sermos um bocadinho donos da nossa própria morte.

Nas enfermarias dos hospitais, os doentes morrem sem a família porque as visitas estão proibidas, e nas unidades de cuidados intensivos, se tiverem sorte, os doentes morrem de mão dada com alguém que usa pelo menos dois pares de luvas e que é impossível reconhecer devido aos equipamentos de protecção individual necessários.

Depois do último suspiro, os cuidados têm de ser precisos, ágeis e eficientes. Os corpos são lavados e colocados em duplo saco de cadáver, devidamente identificado com o nome do doente e com a indicação relativa ao risco biológico, e esses sacos, divergindo do habitual, são desinfectados por fora com álcool a 70º. As equipas das funerárias não podem preparar os corpos, que ficam, por isso, nus dentro de um caixão que não voltará a ser aberto, e devem aconselhar as famílias a optar pela cremação.

A morte tornou-se asséptica, sem margem para toques ou despedidas. E isto é profundamente doloroso. Para quem morre sozinho, para quem cuida de quem morre e que, nestes dias, tem de ser mais máquina do que gente, e para os que ficam e são informados por telefone que acabou.

Nunca foi fácil lidar com a morte. E deve ser por isso que passamos a vida a fingir que somos imortais. Mas também nunca foi tão difícil como agora. Porque agora não há tempo, porque agora há medo, porque agora quase não há despedidas. Agora, os complexos que marcam o batimento cardíaco vão-se afastando até desaparecerem completamente e não há ninguém a quem o ruído dos alarmes possa incomodar. O SARS-CoV-2 deixou-nos a morrer sozinhos.

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