Cresce a procura das refeições para sem-abrigo. “Há muita fome por estes dias”

A paróquia da Senhora da Conceição tem servido mais de 300 refeições diárias (em regime take-away) a pessoas em situação de sem-abrigo ou com aperto financeiro acrescido. Aumento no número de voluntários é importante mas reforços nas ajudas são “imprescindíveis”. Médicos do Mundo estão condicionados mas continuam a ajudar os mais vulneráveis.

Fotogaleria

Uma carrinha branca estaciona à porta da paróquia Senhora da Conceição, situada na Praça do Marquês, no Porto. “Juntos vamos vencer esta guerra” é a frase que se pode ler no capô. Dois homens, um com uma viseira de plástico que desce até à linha dos ombros e o colega com uma máscara protectora, levam os sacos de compras que transportavam nos bancos de trás até à cozinha, onde voluntários cortam rodelas de salsichas, desfazem o papel de alumínio que esconde bolos acabados de confeccionar e depositam embalagens em cima de embalagens de pão. Daqui a nada, começa mais um serviço da Porta Solidária, projecto que, desde 2009, prepara refeições para pessoas em situação de sem-abrigo ou vulnerabilidade financeira – e que, com a propagação do surto do novo coronavírus, tem tido de aumentar a sua capacidade de resposta “exponencialmente”.

Quem dá essa garantia é o pároco Rubens Marques. Se, “em dias normais”, a Porta Solidária alimentava cerca de 160 bocas por dia, esse número agora cresceu para mais de 300. Um aumento significativo em termos de procura, que, por sua vez, exige um reforço rigoroso dos recursos existentes. A disponibilidade do corpo de voluntários, sempre um dos principais motores desta iniciativa, não é um problema, no entanto. “Várias associações que saíam à noite em carrinhas para dar de comer à população sem-abrigo reduziram ou suspenderam a actividade por causa das medidas de contingência. Há pessoas desses projectos que já se juntaram a nós no serviço”, explica o padre.

É com a capacidade de a Porta Solidária se certificar que “não falta pão na mesa” que a organização sem fins lucrativos está mais preocupada. Daí, a título de exemplo, o apelo deixado nas redes sociais: o grupo tem tentado entrar em contacto com “restaurantes e negócios fechados” que, no meio da paralisação, tenham as prateleiras cheias e consigam oferecer algum tipo de apoio. De resto, os alimentos chegam, fundamentalmente, na forma de donativos, feitos por “algumas empresas” ou por “pessoas que estão a par da nossa intervenção e querem ajudar”. “Felizmente, podemos dizer que as ofertas têm aumentado muito, nesta altura em que nunca foram tão precisas”, frisa Rubens Marques. Há quem, sem deixar os sacos de arroz ou massa à porta da paróquia, opte pelas transferências bancárias, dando dinheiro que o projecto utiliza “exclusivamente na compra de comida e em combustível para as recolhas”. Perante os obstáculos impostos pela crise pandémica, estas contribuições são “imprescindíveis” para o sucesso das operações. “Há muita fome por estes dias. É uma situação que nem dá para imaginar.”

Fotogaleria
Paulo Pimenta

Mas os desafios a que a iniciativa é forçada a responder em tempos de covid-19 não se esgotam na luta contra a escassez de alimentos. Num momento em que o termo “distanciamento social” se configura como um conceito-chave, os voluntários trabalham com cuidados redobrados. As luvas e máscaras são obrigatórias – e os utentes não são servidos a menos de dois metros de distância. “Para além de fazermos refeições para a população sem-abrigo, também mostramos a nossa disponibilidade para ajudar pessoas com toxicodependência ou idosos que não têm família e apoios. Aliás, a Porta Solidária está aberta a todos”, confessa o pároco. “Uma vez que lidamos com grupos de risco, por nós e por eles, precisamos de todos os cuidados possíveis.”

Com o surto de covid-19, os utentes já não comem na sala que estava especificamente designada para o efeito. Desde há quase um mês, a Porta Solidária realiza serviços de take-away. “As pessoas vêm até à paróquia, colocam-se na fila, respeitando a distância de segurança, pegam na refeição e vão-se embora”, aponta Rubens Marques. “Infelizmente, durante ninguém sabe bem quanto tempo, tem que ser assim.” Os cerca de 50 voluntários, dos que já colaboravam com regularidade antes de o novo coronavírus trocar as voltas ao mundo aos que se juntaram nas últimas semanas, dividem-se em três equipas. Uma prepara kits que contêm sandes, um iogurte, uma peça de fruta e, havendo possibilidade, um pedaço pequeno de bolo. De segunda a domingo, entre as 17h e as 20h30, os restantes grupos, cada um constituído por 21 elementos, ocupam-se com a confecção e a distribuição da comida. Enquanto esperam pela sua vez, aqueles que dependem do cuidado prestado por este projecto podem lavar e desinfectar as mãos com sabão azul. “Sabemos que muitos não têm acesso a este cuidado aparentemente tão simples e básico durante o resto do dia.”

Maria Conceição Assis mora na zona do Marquês e já ajuda a paróquia Senhora da Conceição há muito tempo. “Por norma, a minha vida familiar não me permite fazer voluntariado a esta hora, mas, neste momento de crise, achei que não podia ficar parada”, assinala ao PÚBLICO. Há três semanas, a licenciada em Filosofia começou a trabalhar diariamente com a Porta Solidária, e, assim como o pároco, não olhou com estranheza para o aumento recente no número de pessoas em situação de sem-abrigo ou dificuldade financeira que têm recorrido à iniciativa. “Se muitos serviços de apoio tradicionais ficam congelados, quem está a atravessar grandes constrangimentos e precisa de ajuda procura as portas que ainda estão abertas”, adianta.

A voluntária tem pena que os serviços de take-away sejam a única solução viável neste momento. “Esperamos um dia poder voltar a servir os utentes à mesa, porque tenho a certeza que o facto de estarem sentados uns com os outros e conseguirem conversar faz uma diferença muito grande.” De resto, enquanto esse contacto - “que às vezes alimenta tanto como a comida” - está fora de questão, a equipa faz o que está dentro do seu alcance para “trazer o conforto possível”. “Tentamos que o gesto de dar não seja apenas um automatismo. Mesmo com as restrições, trocamos algumas palavras e esclarecemos dúvidas quanto à higiene pessoal. Tudo o que, de alguma forma, os ajude a perceber que têm quem pense neles.”

Jorge Silva também começou a trabalhar enquanto voluntário há três semanas. Começou por entregar uma carrinha cheia de roupa usada ao espaço da Cruz Vermelha na freguesia de Baguim do Monte, em Gondomar. A distribuição de batatas, arroz, feijão e enlatados na paróquia Senhora da Conceição surgiu depois de dez membros da claque dos Super Dragões, da qual o pai de três filhos faz parte, decidirem “limpar os armazéns e oferecer tudo o que dava para oferecer”. “Neste momento somos todos do clube”, salienta. “Se queremos sobreviver a isto, temos de o fazer juntos.”

Médicos do Mundo adaptam cuidados de saúde habituais. “Estamos reajustados à realidade”

Também condicionados estão os Médicos do Mundo, que continuam a prestar os seus habituais “cuidados de saúde aos mais vulneráveis”, mas têm alterado as rotinas em função dos desafios lançados pelo novo coronavírus. Carla Paiva, directora executiva dessa organização não-governamental, sublinha que as “rondas” habitualmente feitas pelo colectivo para monitorizar o estado de saúde da população sem-abrigo continuam a ser feitas, tendo sido “reajustadas à realidade”. “Há pessoas nessa condição que agora estão centralizadas em respostas físicas, como pavilhões polidesportivos ou centros de acolhimento. Diminuímos o número de saídas, mas estamos próximos dessas estruturas”, aponta. “Temos mais cuidados, naturalmente, mas o compromisso de prestar auxílio a estes grupos de risco é o mesmo.”

Dentro da sede do Porto, na Rua dos Mercadores, os Médicos do Mundo distribuem máscaras protectoras e luvas, mas começam a sentir necessidade de reforçar o equipamento de que dispõem. “Estamos a contactar empresas e vamos também fazer uma campanha de angariação de fundos”, anuncia Clara Paiva. “Dependemos de entidades privadas e de fundos próprios. O momento é extraordinariamente delicado para todos. Nenhuma organização tinha uma pandemia a meio do ano no seu planeamento financeiro.”

Fotogaleria
Tiago Lopes

Maria Conceição Assis lembra que vários colaboradores da paróquia Senhora da Conceição foram “como que convidados a ficar em casa durante uns tempos por já pertencerem a uma faixa etária mais avançada”. Não havia, no fundo, “razão para correrem riscos desnecessários”, sobretudo quando, “felizmente, temos conseguido contar com algum apoio adicional”. Em três semanas a preparar refeições para pessoas em situação de sem-abrigo ou outras vulnerabilidades, a voluntária já viu “algumas caras repetidas”. “É muito triste, queríamos nós que ninguém batesse à nossa porta, era um sinal incrível”, reflecte. “Mas enquanto precisarem e enquanto pudermos ajudar, ela está sempre aberta.”

Texto editado por Ana Fernandes