Com um pai em teletrabalho, o outro não recebe apoio aos filhos

Num casal, só um dos pais pode receber o apoio familiar extraordinário e há condições que dificultam o acesso. Com o país fechado em casa, qual é a eficácia da medida?

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Um pai ou uma mãe que pode ficar a conta de um filho recebe 66% do vencimento Daniel Rocha

À primeira vista, parecia pacífico. Mas o diploma do Governo não é claro e a dúvida tem deixado meio país com uma pergunta no ar: se um casal com um filho pequeno estiver em regime de teletrabalho neste período de recolha, um deles pode abdicar do trabalho para dar atenção ao miúdo em casa e beneficiar do apoio especial? A resposta é não.

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À primeira vista, parecia pacífico. Mas o diploma do Governo não é claro e a dúvida tem deixado meio país com uma pergunta no ar: se um casal com um filho pequeno estiver em regime de teletrabalho neste período de recolha, um deles pode abdicar do trabalho para dar atenção ao miúdo em casa e beneficiar do apoio especial? A resposta é não.

Apesar de a lei de medidas excepcionais contra o novo coronavírus não o afastar com todas as letras, é essa a interpretação que a Segurança Social faz das regras.

Na prática, os dois pais são forçados a ficar em teletrabalho tomando conta dos miúdos enquanto cumprem o seu horário de trabalho, corroboram dois advogados ouvidos pelo PÚBLICO, embora não acompanhem essa posição e ambos alertem para a dificuldade que é conciliar essas tarefas. Até porque teletrabalho é, de facto, “trabalho”, como resume Pedro da Quitéria Faria, especialista em direito laboral.

No Ministério da Segurança Social, defende-se que a filosofia da medida, lançada antes da declaração do estado de emergência, é a de garantir que pelo menos um dos pais consegue estar em casa porque o infantário ou a escola do filho fechou por ordem do Governo. Mas numa altura em que as empresas tentam não congelar se for possível, e manter o trabalho à distância, o que salta à vista é o desafio de os pais conciliarem as tarefas em frente ao computador, cumprirem o horário, os contactos telefónicos, eventuais contactos com clientes ou videochamadas, ao mesmo tempo em que têm de dar atenção aos filhos confinados a quatro paredes ou quando alguns são ainda bebés.

Primeiro, a lei. Raquel Caniço, advogada da Caniço Advogados, explica que, embora o decreto-lei não afaste “expressamente o benefício do apoio excepcional à família quando um dos cônjuges está a trabalhar no regime de teletrabalho”, o diploma, ao referir-se às faltas justificadas do trabalhador, remete para o conceito de faltas “motivadas por assistência inadiável a filho”. E, nessa medida, ao interpretar-se o conceito relativo à “assistência inadiável”, o que resulta do diploma é que, havendo um dos pais em teletrabalho, o outro “não poderá beneficiar do apoio” por assistência à família. É justamente essa a interpretação da Segurança Social, que, num documento com perguntas e respostas, fez valer essa posição.

Trabalho presencial

O que acontece se, por exemplo, o pai quiser recorrer ao apoio extraordinário de apoio familiar e a mãe estiver em teletrabalho porque a empresa o determinou unilateralmente? O pai é “obrigado” a estar também em teletrabalho (ou a deslocar-se fisicamente para a sua empresa), sendo que na prática nenhum consegue recorrer ao apoio à família que permite receber dois terços do seu vencimento? Sim, responde Pedro da Quitéria Faria, sócio da sociedade de advogados Antas da Cunha ECIJA, respaldando-se na interpretarão da Segurança Social e na legislação em vigor até este momento, mas discordando da posição assumida pela área do Trabalho.

Nesse caso, diz, “nenhum dos dois pais teria acesso ao apoio à família”, pois a ajuda “está sempre dependente, e a montante da sua concessão, de um dos progenitores não se encontrar num regime de teletrabalho”.

Debruçando-se sobre a eficácia da medida, Raquel Caniço aconselha a que, no futuro, se avaliem estas situações, “pois bem sabemos que trabalhar no regime de teletrabalho com filhos em casa que precisem de ‘fiscalização permanente’, se revelará bastante complicado, podendo prejudicar a produção do teletrabalhador, até porque não sabemos durante quanto tempo a situação actual se manterá”.

Para a advogada é, porém, preciso reconhecer que o Governo procura “assegurar a continuidade do trabalho e subsistência” das empresas. “Embora acreditemos que todos reconhecem que trabalhar em teletrabalho e simultaneamente ter que prestar apoio e cuidados a filhos até aos 12 anos possa influenciar a produtividade, parece-me que se tenta decidir numa lógica de subsistência, já que o facto dos progenitores, nas condições referidas, não poderem beneficiar do apoio excepcional à família, representa menor despesa para a própria Segurança Social”, salienta a jurista.

100% vs. 66%

Voltemos ao exemplo do casal. A advogada corrobora, a partir da interpretação da Segurança Social, que se os dois pais tiverem “a possibilidade de trabalhar por teletrabalho, nenhum deles conseguirá beneficiar do apoio excepcional à família”, pois o diploma do Governo “afasta a possibilidade do benefício ao apoio excepcional à família nos casos em que é possível continuar a trabalhar” à distância.

Neste cenário, os dois pais ficam a receber o seu salário a 100% pago pela empresa, pois continuam a trabalhar. Já se um deles estivesse com a medida de apoio familiar, teria um corte, pois o apoio corresponde a dois terços da remuneração base (66%, metade pagos pela empresa e a outra pagos pela Segurança Social), havendo um limite mínimo de 635 euros (um salário mínimo) e um máximo de 1905 euros (três salários mínimos).

Questionado por email se está prevista alguma rectificação a estas normas, o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social não respondeu por escrito.

Para Pedro da Quitéria Faria, a leitura da Segurança Social “acaba por demonstrar que ainda existe um forte estigma em relação ao trabalhador em regime de laboração”. E que a análise da Segurança Social pretende dizer: “se [a pessoa] não está em laboração na empresa e estará, em princípio, a laborar em casa, é porque não está verdadeiramente a trabalhar e, por isso, pode então assegurar a guarda e acompanhamento dos filhos”. Apesar de o teletrabalho estar previsto no Código de Trabalho “há sensivelmente 17 anos”, constata, “a verdade é que só residualmente ‘saiu do papel’”.

Especialista em direito laboral, Quitéria Faria deixa à reflexão: “Uma pessoa que preste trabalho num regime de laboração de teletrabalho está a trabalhar normalmente e de facto. Estes dias têm sido paradigmáticos a este respeito. Provavelmente, por estes dias, o progenitor em teletrabalho ou tem a ajuda de um terceiro para a guarda dos filhos ou de facto encontra-se num regime de teletrabalho parcial ou residual, porquanto os menores confinados à habitação exigem a atenção e o cuidado do seu progenitor. Deste modo, e se um trabalhador se encontra a laborar normalmente, não se compreende esta limitação. Não se consegue com sucesso e eficiência estar a trabalhar e, cumulativamente, a assumir as funções de apoio constante à família/filho”.

Para Raquel Caniço, o entendimento da Segurança Social “demonstra uma clara e notória preocupação com a sua sustentabilidade, pretendendo que o referido apoio seja atribuído apenas nos casos em que a assistência ao menor ou outro dependente seja realmente necessário e inadiável, por não terem outra solução. Até porque não temos perspectiva de quanto tempo nos manteremos com estas medidas excepcionais em vigor”.