Viver depois da morte

Na era da socialização virtual, as manifestações públicas de uma dor antes privada voltam a ganhar uma importância significativa, em certos casos acompanhando as práticas tradicionais, noutros acabando por substituí-las.

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É sabido que as reacções são mediadas pelos significados, sendo este o motivo pelo qual os mesmos acontecimentos têm impactos diversos para diferentes pessoas. Pela sua natureza universal e definitiva, a morte deveria ser um fenómeno de interpretação estável, mas sendo certo que todos morremos, nem mesmo os significados atribuídos à morte serão estáticos. 

Nas últimas décadas, a incorporação da Internet e demais tecnologias em todos os domínios da vida alterou drasticamente o pensamento ocidental e, com ele, os discursos em torno da morte. Mesmo o actual debate sobre eutanásia é certamente influenciado pelo contexto histórico, religioso, social e económico, por sua vez altamente moldado pela relação com a tecnologia.

Mas se a modernidade líquida impele ao individualismo e à fragilidade relacional, como explicar o paradoxo na alteração da vivência da morte e do luto? O facto é que a experiência solitária e marginalizada que caracterizou a cultura de negação da morte até ao século XX está a ser substituída por práticas colectivas, partilhadas e desagregadas, que ocorrem em meio virtual. Paralelamente, o processo faseado e doloroso de aceitação da perda parece dar lugar à possibilidade de elaboração de uma relação reconfortante. O sistema de crenças relacionadas com a morte está a transformar-se a ritmo acelerado – em termos espaciais, temporais e sociais – dando lugar a uma nova visão da morte e da relação entre mortos e vivos. 

Viver o luto no ciberespaço parece permitir um regresso à experiência partilhada da era pré-industrial, que foi desaparecendo com os surtos epidémicos do século XIX (que exigiam funerais frequentes e sumários) que levou, por fim, à proibição dos enterramentos nas igrejas e ao seu afastamento para os cemitérios modernos, longe das comunidades.

Na era da socialização virtual, as manifestações públicas de uma dor antes privada voltam a ganhar uma importância significativa, em certos casos acompanhando as práticas tradicionais, noutros acabando por substituí-las. São muitos os exemplos que ilustram esta alteração de narrativas, desde os memoriais online (primeiras plataformas desta nova visão), os cemitérios virtuais e sobretudo as redes sociais. Estas últimas não só permitem a difusão de concepções de morte, tradições e rituais, mas aumentam a sua visibilidade e vulgarização. Facilitam ainda novas formas de luto, permitindo expressar emoções num perfil criado e pertencente ao falecido em lugar de criar uma nova representação da pessoa (por exemplo, uma campa) e reforçando a continuidade do vínculo: Este não termina, é transformado. Os estudos sugerem que estas práticas têm um efeito sobretudo positivo sobre os enlutados.

Considerando os nossos vastos registos online, é incontornável considerar também a questão do legado digital, ideia que, por si, abala a verdade inexorável que liga a morte à noção de fim. À parte da ficção distópica, é possível encontrar inúmeros exemplos de serviços de planeamento da memória online e herança digital (por exemplo, a criação de posts ou mensagens póstumas), para não falar da  investigação que explora as potencialidades da inteligência artificial na criação de consciências digitais a partir da pegada digital, com vista à interacção póstuma com os nossos sobreviventes. Nada disto é isento de problemas, mas questões éticas e legais à parte, é inegável que o significado cultural da morte foi já irreversivelmente alterado. E se assim é, teremos que perguntar: Morreremos mesmo?

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