Cresce a insatisfação com a democracia

Apesar da insatisfação com a democracia ser global, segundo o estudo da Universidade de Cambridge, os casos britânico e norte-americano, pela sua candente actualidade, dão-nos muito que pensar.

Uma breve notícia do PÚBLICO de quinta-feira passada e que, infelizmente, corria o risco de passar despercebida, dava conta de um estudo da Universidade de Cambridge sobre a crescente insatisfação existente no mundo – e em particular nos Estados Unidos (EUA) e no Reino Unido (RU), por coincidência os dois países politicamente mais em foco na última semana – relativamente à democracia. Segundo o estudo, que abrange um universo de 154 países e quatro milhões de pessoas, essa insatisfação estaria a atingir o nível mais alto de sempre, tendo crescido de 48% em 1995 para 58% em 2019.

Mas se este salto global já justifica a inquietação, os quadros fornecidos pelos EUA e o RU são simplesmente alarmantes: no primeiro caso, passou-se de um grau de satisfação de 75% entre 1995 e 2005 para menos de 50% na última década; no segundo, passou-se de 33% de insatisfação ainda em 2005 para 61% (!) em 2019.

A principal explicação avançada pelos autores do estudo aponta para o “choque económico global” de 2008, a que se juntaria na Europa o surto de migrantes e refugiados. Mas a violência dos números parece ultrapassar as explicações, como se uma vertigem de profunda irracionalidade tivesse atingido, em períodos de tempo relativamente curtos, os povos mais familiarizados com regimes democráticos (desde o caso historicamente mais antigo dos britânicos até ao dos que passaram a encarnar a mais poderosa democracia do mundo, os norte-americanos). Britânicos e norte-americanos que, precisamente, vivem hoje dois grandes psicodramas nacionais: a entrada em vigor do “Brexit”, há apenas dois dias, e a derrota anunciada no Senado do impeachment de Trump, com votação prevista para a próxima quarta-feira.

Apesar da insatisfação com a democracia ser global, segundo o estudo da Universidade de Cambridge, os casos britânico e norte-americano, pela sua candente actualidade, dão-nos muito que pensar. Desde logo, o “Brexit” é a expressão de um profundo desencanto, uma divisão dramática a nível social (mas também nacional, como acontece na Escócia e na Irlanda) e uma crise de autoconfiança sem precedentes na mais velha democracia do mundo. Se juntarmos a aventura sem rumo do “Brexit” à pressão dos movimentos populistas e xenófobos que atravessam a Europa de Norte a Sul, temos um retrato rápido das tempestades que ameaçam o projecto europeu e fazem perigar a confiança na democracia.

Ora, quanto mais a Europa expuser a fragilidade do seu projecto – acentuada pela saída do RU – mais débil será essa confiança. Uma fragilidade extensível aos britânicos, erraticamente em busca de um rumo e uma nova ambição nacional inglesa.

Já nos Estados Unidos, a crise da democracia tem as portas escancaradas, a começar logo pela ruína do prestígio das suas instituições representativas. Quando se faz de conta que um Presidente não disse o que disse e não fez o que fez, por mais evidente e comprovado que isso seja – mas é recusado pelos advogados de Trump e a maioria republicana no
Congresso –, os limites para a impunidade e a irresponsabilidade políticas ou até criminais deixam de existir. Aliás, um dos advogados de Trump, Alan Dershowitz, conhecido por ter patrocinado O.J.Simpson e os predadores sexuais Weinstein e Epstein, iria ainda mais longe, com uma declaração que irá ficar, decerto, nos manuais da jurisprudência: “Se o Presidente faz algo que acredita ser benéfico para a sua eleição, no interesse público, isso não é o tipo de troca de favores que é punível com o impeachment”. Eis apenas uma prova de que não faltam razões para temermos a insatisfação com a democracia.

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