O Regresso da Anarquia

O anterior livro de Carlos Gaspar, Raymond Aron e a Guerra Fria, debruçava-se sobre subsequentes à II Guerra e os seus novos alinhamentos estratégicos. Este, que é hoje lançado no auditório do Público, às 17h30, aborda os anos posteriores à Queda do Muro, com o reposicionamento estratégico dos EUA e a emergência de duas grandes potências revisionistas da ordem liberal.

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XI Jinping e Donald Trump Reuters

No dia da eleição presidencial norte-americana, quando os resultados se começaram a tornar claros, o Embaixador de França nos Estados Unidos, Gérard Araud, tweetou: “Um mundo está a acabar diante dos nossos olhos”.

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No dia da eleição presidencial norte-americana, quando os resultados se começaram a tornar claros, o Embaixador de França nos Estados Unidos, Gérard Araud, tweetou: “Um mundo está a acabar diante dos nossos olhos”.

As últimas eleições presidenciais nos Estados Unidos confirmam a polarização política que opõe um Partido Republicano onde tendem a prevalecer as forças nacionalistas, reaccionárias e proteccionistas a um Partido Democrático onde predominam as correntes multiculturalistas, pacifistas e socialistas. A ascensão paralela dos populismos não é um fenómeno conjuntural: as suas causas incluem as mudanças tecnológicas que antecipam uma nova revolução industrial; a globalização das cadeias de produção e a transferência externa de um número significativo de empregos; a estagnação prolongada dos rendimentos das classes médias e o aumento das desigualdades sociais; e, sobretudo, as políticas identitárias, centradas primeiro à esquerda, com o reconhecimento das minorias étnicas e urbanas, depois à direita, com a révanche dos deplorables, as classes populares brancas e rurais.

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A força crescente das correntes ideológicas radicais e sectárias, em detrimento dos valores tradicionais da democracia norte-americana impõe uma viragem que marca o declínio da convergência centrista e internacionalista entre conservadores e liberais na política norte-americana. Esse compromisso histórico, responsável pelos consensos que sustentaram durante décadas a continuidade das políticas externas indispensáveis ao reconhecimento dos Estados Unidos como o garante da ordem liberal, está posto em causa com a eleição de um Presidente “jacksoniano"[2], que anunciou durante a campanha uma revolução na política externa norte-americana, resumida na sua palavra-de-ordem “America First”

Donald Trump quer destruir o projecto de sucessivas gerações norte-americanas que procuraram moldar um mundo estável e aberto à semelhança dos Estados Unidos.

A linha nacionalista jacksoniana é congruente com a continuidade da estratégia de retraimento, mas ameaça transformar essa orientação numa estratégia de offshore balancing, que pode pôr em causa a disciplina multilateralista das políticas externas norte-americanas e as alianças permanentes com as democracias europeias e asiáticas que sustentam a preponderância dos Estados Unidos e a ordem liberal internacional.

O Presidente Trump e a administração republicana ainda não levaram a cabo essa revolução na política externa norte-americana, mas as suas políticas revelam uma determinação clara em reduzir as responsabilidades internacionais dos Estados Unidos e libertar a principal potência internacional do fardo da ordem liberal. confirmam essa linha: a Rússia é o confirma essa linha: a Rússia é o principal perturbador da estabilidade internacional no curto prazo, a China o grande desafio ao primado norte-americano no médio prazo.

A nova estratégia global dos Estados Unidos em relação às duas potências revisionistas traduz-se em dois registos distintos - uma linha ofensiva contra a China na frente asiática e uma posição defensiva em relação à Rússia na frente europeia. (…)

Na frente asiática, os Estados Unidos iniciam uma escalada nas relações com a China em todos os domínios. Desde logo, a Marinha norte-americana, acompanhada pelos seus aliados, como a Grã-Bretanha, a França, a Austrália ou o Japão, reinicia as Operações de liberdade de navegação (FONOPS) ao largo das bases chinesas instaladas nas ilhas artificiais construídas nas Spratly. Por outro lado, a diplomacia norte-americana passa a exercer uma pressão política permanente sobre os aliados contra a penetração económica e tecnológica chinesa, com destaque para a campanha contra o acesso da Huawei aos novos sistemas digitais, que ameaça comprometer a troca de informações entre as democracias. Por último, os Estados Unidos põem em marcha uma estratégia de desacoplamento das duas maiores economias mundiais, que visa limitar a competitividade do seu principal adversário em tecnologias de vanguarda e, ao mesmo tempo, reconstituir novas redes de inovação internacionais que excluem a China.

A estratégia de desacoplamento inverte os termos de referência originais do pivot asiático e procura pôr fim à interdependência entre os Estados Unidos e a China para tornar possível uma estratégia de contenção do novo challenger continental. (…)

Há uma diferença clara nas políticas que concretizam a dupla contenção da China e da Rússia tanto na dimensão externa, como na dimensão interna. A estratégia de tensão que domina as relações sino-americanas é consensual em Washington, mas as relações russo-americanas estão no centro de um conflito entre o Presidente e a maioria do Congresso na sequência da intervenção de Putin na eleição presidencial contra Hillary Clinton. No debate norte-americano as posições dividem-se entre os partidários da contenção simétrica das duas potências revisionistas e os partidários de uma estratégia de divisão da parceria sino-russa, que defendem um rapprochement com a Rússia de Putin. (…)

Para começar, os Estados Unidos retiram-se do TPP - o acordo decisivo para consolidar a coligação multilateral contra a China e o pivot asiático; suspendem as conversações com a União Europeia sobre a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP), um passo relevante para aprofundar a comunidade ocidental; denunciam os acordos sobre a suspensão do programa nuclear militar iraniano (JCPoA), assinados pelos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança e pela Alemanha; e desistem do Acordo de Paris sobre as mudanças climáticas, resultante dos acordos negociados entre Obama e Xi Jinping. Essas decisões marcam um novo distanciamento em relação à ordem multilateral e põem em causa acordos subscritos pelos aliados democráticos dos Estados Unidos, incluindo o Japão, a Grã-Bretanha, a França e a Alemanha.

Por outro lado, o novo Presidente apoia a saída da Grã-Bretanha da União Europeia e defende  uma nova condicionalidade na aplicação do artigo V do Tratado de Washington, que passa a ser válido exclusivamente para os aliados que cumpram as obrigações financeiras assumidas no quadro da NATO[5]. Trump demarca-se do espírito da comunidade das democracias em que os Estados Unidos e os aliados estão unidos por uma relação de confiança que excede o alinhamento temporário entre Estados com interesses convergentes[5].

Finalmente, Trump toma posição contra as políticas de democratização e defende o respeito integral pela soberania dos Estados e pela sua autonomia política interna: “Todos os Estados devem respeitar os direitos de todos os outros Estados”. Nesse sentido, demarca-se das políticas neoliberais e neoconservadoras de mudança dos regimes autocráticos e, como regra, dispensa-se de criticar não só os abusos de poder dos seus aliados, como a

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Trump com Vladimir Putin Reuters

Arábia Saudita, mas também as políticas repressivas das potências autoritárias, como a China ou a Rússia. 

Dito isso, prevalecem linhas de continuidade em políticas essenciais e os Estados Unidos confirmaram as suas alianças e as suas obrigações em domínios críticos da segurança. Em primeiro lugar, as políticas da NATO que visam robustecer a posição dos aliados europeus perante a Rússia, incluindo a Iniciativa de Segurança Europeia e a Iniciativa para a Disponibilidade Operacional da NATO, foram reforçadas e os Estados Unidos passaram a vender armas à Ucrânia. Os acordos de defesa com o Japão, a Austrália, a Coreia do Sul e as Filipinas, assim como as garantias de segurança a Taiwan, permanecem inalterados.

Em segundo lugar, os Estados Unidos ainda não abandonaram o Afeganistão, onde continuam à procura de um acordo com os Taleban para retirarem as suas forças; os militares norte-americanos ainda não deixaram de participar nas operações aliadas contra o ISIS e as redes terroristas islâmicas - mas a retirada das forças especiais da Síria deixou os aliados curdos expostos à retaliação da Turquia - e garantem a segurança nas fronteiras da Síria com o Iraque e com Israel. O Irão passou a ser reconhecido como a ameaça principal à segurança regional para tornar possível a consolidação das alianças regionais dos Estados Unidos, nomeadamente com Israel e com o Egipto e a Arábia Saudita. Em Abril de 2017, quando as forças de Bachar al-Assad voltaram a usar armas químicas contra as populações civis, o Presidente Trump, em coordenação com o Presidente Emmanuel Macron e a primeira-ministra Theresa May, não hesitou em responder com o bombardeamento aliado de alvos militares na Síria que o Presidente Obama não tinha levado a cabo quatro anos antes.

Em terceiro lugar, os Estados Unidos confirmam a prioridade asiática e alargam a estratégia de contenção da China às dimensões económicas e tecnológicas. Os novos documentos estratégicos, nomeadamente a Estratégia de Segurança Nacional, sublinham o regresso da competição estratégica entre as principais potências ao centro da política internacional e identificam a China e a Rússia como as duas potências revisionistas que podem pôr em causa os interesses dos Estados Unidos.