Pedro Abrunhosa, mutante sem mudar de pele

Cantor despediu-se de uma série de quatro concertos nos coliseus numa versão mais depurada e crua da sua música. As palavras ergueram-se, o suor perdeu força e viu-se e ouviu-se um Abrunhosa reinventado que valeu a pena conhecer.

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Que um concerto de Pedro Abrunhosa no Coliseu do Porto acaba invariavelmente em apoteose não é novidade para ninguém – ele está no seu reduto de incondicionais, onde tudo se espera, tudo se celebra, tudo se perdoa. O concerto deste sábado à noite acabou assim, mas nem por isso se pode dizer que foi por repetir um daqueles momentos como o que o disco ao vivo de 2011 captou. Abrunhosa mudou de pele, trocou o suor pela quietude, o ritmo pelas palavras, a energia pela subtileza e apresentou ao seu público uma música mais depurada, mais sensível e mais poética sem jamais ter abdicado da sua essência. Assumiu uma pose de mutante sem mudar de ADN, optou por “mudar de pele”, como reconheceria lá para o final, sem se desfazer do legado de R&B, ou do jazz ou da pop versão Comité Caviar.

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Que um concerto de Pedro Abrunhosa no Coliseu do Porto acaba invariavelmente em apoteose não é novidade para ninguém – ele está no seu reduto de incondicionais, onde tudo se espera, tudo se celebra, tudo se perdoa. O concerto deste sábado à noite acabou assim, mas nem por isso se pode dizer que foi por repetir um daqueles momentos como o que o disco ao vivo de 2011 captou. Abrunhosa mudou de pele, trocou o suor pela quietude, o ritmo pelas palavras, a energia pela subtileza e apresentou ao seu público uma música mais depurada, mais sensível e mais poética sem jamais ter abdicado da sua essência. Assumiu uma pose de mutante sem mudar de ADN, optou por “mudar de pele”, como reconheceria lá para o final, sem se desfazer do legado de R&B, ou do jazz ou da pop versão Comité Caviar.

A nova pele assenta bem ao cantor. Foi um magnífico concerto, onde as baladas se tornaram ainda mais soturnas, onde até as batidas dançáveis arrefeceram no ritmo ou nos decibéis para abrirem lugar às palavras e aos silêncios. Pedro Abrunhosa explicou que atravessa uma fase em que precisou de proceder a “um exorcismo interno”, de estabelecer “uma relação mais interior com as minhas músicas”, e procedeu a uma razoavelmente profunda transformação das suas canções. Ouvir Não posso mais sem a energia explosiva da origem (Viagens, de 1994) foi muito mais do que surpreendente: foi a prova cabal da riqueza das composições do autor e da sua enorme capacidade musical para recriar as bases da sua própria inspiração.

O concerto deste sábado, o último de uma série de quatro que lotaram os coliseus de Lisboa e do Porto, começou como um prenúncio do que estava para vir: com Pedro Abrunhosa na penumbra, sentado ao piano, a interpretar uma versão mais balbuciada de Momento. A primeira fase do espectáculo assim se manteria, com a mesma luz ténue, a mesma narrativa despojada, quase crua, na qual os versos se impuseram à melodia, com Pedro Abrunhosa a oscilar entre o papel de cantor e o de diseur. Várias vezes esses versos apareciam escritos num muro de projecção do palco, numa espécie de karaoke que não era destinado às cordas vocais, mas à leitura interior, no máximo talvez à recitação a meia voz.

A introdução do primeiro tema do seu novo disco (Espiritual, de 2018) aconteceu com Vamos levantar voo e pela primeira vez apareceu a magnífica banda que acompanha o cantor desde Longe – já lá vão quase dez anos. Mas nem uma dúzia de músicos no palco transformou o pendor intimista com que Pedro Abrunhosa preparou estes concertos. O ritmo permaneceu mais arrastado, a intensidade mais contida, mesmo em canções como Fazer o que ainda não foi feito, e as palavras do cancioneiro do cantor, que falam de distância, de viagens, de amores urgentes, de solidão ou, na sua sempre presente mensagem política, de muros, apareceram sempre sublinhadas no contexto das canções. Se, nos primeiros instantes, a quietude, quase placidez, do concerto parecia causar estranheza a um público habituado a saltos, gritos e mergulhos até ao limiar do rock mais duro, a meio o Coliseu estava rendido.

Como Pedro Abrunhosa é um animal de palco e sabe gerir as expectativas de um público que conhece muito bem (na plateia estavam os que o acompanham há quase 30 anos, mas nas tribunas e na galeria dominava um público muito mais jovem e recentemente convertido), a partir de então a aposta estava ganha. A admirável reinvenção de Não posso mais, numa opção mais bluesy, suscitou a primeira de muitas apoteoses.  Pelo meio, o talento dos músicos do Comité Caviar foi-se desenrolando – é, por exemplo, deliciosa a forma como Bruno Macedo usa o bottleneck nos seus solos de guitarra, embora seja talvez mais prodigiosa a forma como a direcção musical de Cláudio Souto deu expressão às novas roupagens das canções de Abrunhosa. Lá para o final, a osmose entre a plateia e o palco em Ilumina-me serviu apenas como um certificado de consagração: o público deu-se bem com este Abrunhosa em versão minimalista.

Para quem está habituado a ver Pedro Abrunhosa em diferentes formatos (na baixa do Porto, em estádios de futebol de cidades médias ou no Coliseu) e o acompanha há alguns anos, o que se pode dizer é que esta mudança de trajectória cai bem. Mesmo usando matéria-prima antiga, este concerto de quase três horas soou a novo. E, mais importante ainda, soou muito bem. E deixa boas expectativas. A riqueza das composições de Pedro Abrunhosa e muitos dos seus poemas são uma matéria plástica que desafia a criação – mesmo que em momentos anteriores tenha havido arranjos especiais para muitas das suas músicas, dificilmente atingiram a dimensão ouvida neste concerto. Por estes dias, em Lisboa e no Porto, ouviu-se um outro Abrunhosa que continua a ser profundamente Abrunhosa, mesmo que se apresente de blazer e não tenha de transpirar. Sinal de inconformismo, de maturidade ou de encruzilhada criativa, pouco importa.