A extrema-direita europeia

A ideia da criação de um museu a Salazar é um atestado do fracasso dos programas escolares, que nunca fizeram a crítica do Estado Novo.

Portugal é um dos poucos países da Europa que tem sido poupado ao retorno da extrema-direita na cena política. 48 anos de ditadura têm constituído um elemento dissuasor importante. Mas será que esta relativa tranquilidade está garantida?

A Espanha já tem o partido nostálgico Vox, que baseia o seu programa na política anti-imigrante e no nacionalismo centralizador, contrário às autonomias regionais e às tendências separatistas das nações basca e catalã. A descolagem deste partido, criado em 2013, ocorreu recentemente, obtendo representação nas eleições da Andaluzia e nas eleições gerais de 2019 com 10% dos votos.

O partido Alternativa para a Alemanha, criado igualmente em 2013 contra a imigração e o projeto europeu, teve impacto imediato nas eleições europeias de 2014 nesse país. Obteve representação em quase todas as eleições regionais e transformou-se no terceiro partido alemão nas eleições gerais de 2017, com 13% dos votos.

Em Itália, a Liga Norte, criada em 1991 com propósito declarado de autonomia política e fiscal das regiões do norte de Itália, obteve sucessivos ganhos nas eleições locais dessas regiões, mas decaíu com escândalos de corrupção e aliança com a Força Itália. A eleição de Matteo Salvini como líder em 2013 implicou a transformação do partido, que passou a assumir uma política nacionalista, anti-imigrante e anti-euro, acabando por abandonar a designação ‘Norte’ em 2017.

A expansão da Liga em regiões do centro de Itália ocorreu de forma acelerada nos últimos anos, assistindo-se ao seu alargamento à Sardenha. O sul de Itália está agora na mira da Liga, depois de ter obtido 17% de votos nas eleições gerais de 2018, o melhor resultado de sempre, que levou à sua participação no governo partilhado com o movimento Cinco Estrelas, que recolhera 33% dos votos. O Cinco Estrelas caiu para 17% dos votos nas eleições europeias deste ano, enquanto a Liga obteve 34% e está agora creditada com 36-39% de intenções de voto. Isto explica a decisão de Salvini de provocar novas eleições, aparentemente evitadas por uma inesperada aliança Cinco Estrelas/Partido Democrático (que caíra para 19% de votos em 2018). Mas o fracasso desta aliança pode ter efeitos devastadores.

A Liga estabeleceu uma aliança europeia com a Reunião Nacional de Marine Le Pen e os partidos equivalentes dos Países Baixos e da Áustria. Tem a simpatia do governo da Hungria. Tem contactos estreitos com Putin, estando a ser investigada por possível financiamento ilegal russo. O elemento de extrema-direita tornou-se predominante num partido que tinha lideres com posições centristas como Roberto Maroni. A posição ‘nem direita nem esquerda’ tem sido esvaziada, bem como a visão anti-Estado centralizado. Subsiste a crítica do superestado europeu e do euro, partilhada por outros quadrantes ideológicos. Sair do euro será difícil, como na Grécia, pois os votantes da Liga são em boa parte membros da classe média que não querem ver um corte de 20 a 30% no valor das suas poupanças com o regresso à Lira.

No Reino Unido, o Brexit foi a porta de entrada da extrema-direita liderada por Nigel Farage. Quando Cameron decidiu organizar o referendo em 2016, não havia mais de 10% de eleitores preocupados com o problema europeu. O país está agora dividido a meio, com posições contrastadas face à imigração. Os conservadores assumiram o programa de Farage. Em inquéritos recentes a maioria do eleitorado conservador declarou não se importar com a separação da Irlanda do Norte e da Escócia se for esse o preço a pagar pela saída da União Europeia. Curiosa emergência do nacionalismo inglês, baseado na ideia de soberania: a separação da União Europeia, onde o Reino Unido desempenhava um papel importante, poderá conduzir a uma relação clientelar e subserviente com os Estados Unidos.

O eixo da política internacional virou à direita. A esquerda, confrontada com a crise do Estado social, tem demorado a encontrar o seu caminho no mundo pós-União Soviética. As novas direitas estão agora muito influenciadas pela  extrema-direita. O neoliberalismo foi substituído pela mobilização do Estado por políticas musculadas anti-imigrantes. A visão de um Estado reduzido em favor da sociedade civil está em recuo com o regresso da ideologia nacionalista.

O ADN da extrema-direita é secular, embora os regimes ditatoriais do sul da Europa tenham mobilizado a Igreja para o seu apoio nos anos de 1930. A Igreja Católica aprendeu a lição: dali surgiram, no ano passado, as maiores críticas às políticas anti-imigrantes de Matteo Salvini. Este usa agora o terço e os símbolos cristãos em todos os comícios de forma pouco convincente.

Estudos recentes em França mostram o apoio a Macron da maioria dos Católicos praticantes, humanistas, europeístas e universalistas. Mas estamos a falar de 11% da população numa sociedade descristianizada. Na Alemanha as diferentes igrejas cristãs, liberalizadas, têm algum peso na opinião pública. A influência política das igrejas é matizada noutros países.

A imigração não-europeia tem sido utilizada como bode expiatório pelo renascimento da extrema-direita. Empurrados para a migração por condições inimagináveis nos países de origem, explorados pelas redes internacionais de tráfico humano e por empresários locais (veja-se o último romance de Amitav Ghosh, Gun Island), os imigrantes são finalmente abusados por políticos sem escrúpulos. Resta dizer que em Inglaterra o alvo são os imigrantes europeus, não os asiáticos ex-súbditos do império. Identidade e autoctonia são duas noções arbitrárias e essencialistas deste enredo político que assola a Europa em perda demográfica.

O caso português é complexo, dada a inexistência histórica de um movimento social fascista: o Estado Novo foi criado na sequência do golpe militar de 1926 que arruinou as finanças públicas. A referência constante a Salazar é sinal da debilidade social da extrema-direita, embora não seja impossível a criação de um movimento político com expressão eleitoral. A ideia da criação de um museu a Salazar lembra a expressão “brincar com o fogo"; revela o fracasso dos programas escolares, que nunca fizeram a crítica do Estado Novo, apresentado de forma neutra, quando não há neutralidade em política. A afirmação das regras elementares da nossa constituição democrática é incompatível com a celebração, mesmo inadvertida, do passado ditatorial.

Os museus são plataformas de educação cívica, baseadas em cultura material significativa. Devem servir projetos de reflexão sobre património, história e civilização. Meia dúzia de objetos pessoais de um ditador não qualificam, mas na forma ligeira como tem sido debatida a questão há um problema político grave. Na Alemanha ninguém se atreveria a propor um museu de Hitler ou em Itália um museu de Mussolini; seria claramente anticonstitucional. Seria bom manter a dignidade democrática num país que se tem consolidado e ganho credibilidade entre as instituições europeias. 

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