“Turbovacas” alemãs: uma “distopia” genética em nome da eficiência industrial?

Fruto de anos de aperfeiçoamento genético, as vacas leiteiras alemãs produzem quatro vezes mais leite e nascem sem cornos. “São como os carros alemães: conhecidas em todo o mundo pela sua performance e fiabilidade”, diz o fotógrafo Nikita Teryoshin, que neste trabalho mostra como vivem estes animais para alertar para a aproximação de uma realidade “distópica”.

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Será ético “melhorar” organismos vivos, como animais e plantas, em prol da conveniência humana e do lucro? É sobre esta questão, fundamentalmente, que o fotógrafo Nikita Teryoshin se debruça no projecto Hornless Heritage. Entre 2014 e 2017, visitou várias explorações de produção de leite, clínicas de inseminação bovina e feiras do sector na Alemanha, onde as chamadas “turbovacas” ocupam um lugar de grande destaque. Porquê? “As vacas leiteiras alemãs são como os carros alemães: conhecidas em todo o mundo pela sua performance e fiabilidade”, refere o fotógrafo russo na sinopse do projecto. Fruto de anos de aperfeiçoamento genético — granjeado através da promoção da reprodução dos espécimes que detêm características mais adequadas à produção de leite — as “turbovacas” podem produzir até quatro vezes mais leite do que os seus pares e nascem com uma característica vantajosa: não têm cornos. Essa “optimização” genética permite que, hoje, um animal destes “custe entre 40 a 50 mil euros e seja, ainda assim, encarado pelo produtor de leite como um investimento rentável”, refere o fotógrafo.

“Não permita que as suas vacas desperdicem o seu dinheiro”: assim versava um letreiro na feira da indústria de produção de leite EuroTier, que Nikita visitou em Hannover, em 2016. Segundo dados do Ministério da Alimentação e Agricultura da Alemanha, existem no país cerca de 4,2 milhões de vacas que, em muitos casos, vivem em condições que Nikita considera chocantes. “[Visitar os bastidores desta indústria] fez-me lembrar o Matrix e não a imagem da vaquinha no pasto verde que se vê na embalagem de leite”, confessa o fotógrafo em entrevista ao P3, acrescentando que deixou de consumir lacticínios, temporariamente, após dar início a este projecto. O russo explica que parte das vacas leiteiras alemãs vive perpetuamente grávida no interior de recintos industriais e é alimentada à base de ração — apenas um terço dos animais tem acesso a uma área de pasto. Quando perfazem um ano, as vacas são inseminadas e nove meses depois são separadas dos seus vitelos para dar início à extracção de leite — duas ou mais vezes por dia, em cabines de ordenha.

©Nikita Teryoshin
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Cerca de 20% da população de vacas leiteiras vivem acorrentadas, prática que grupos locais de defesa de animais exigem que seja extinta. Vacas que, em décadas passadas, viviam até aos 20 anos, hoje acabam nas prateleiras dos supermercados antes de completar cinco, devido a problemas infertilidade, de mobilidade ou a mastites recorrentes. No entanto, a reduzida esperança média de vida destes animais não tem impacto ao nível da produção de leite. Não negativamente, pelo menos. Em 2018, de acordo com a consultora italiana CLAL, a Alemanha produziu cerca de 32 mil milhões de litros de leite — uma média de 400 litros por habitante por ano.

Um futuro “distópico”

Para além da realidade das “turbovacas”, existe um outro lado “distópico” da indústria multimilionária de produção de leite que é urgente tornar público, urge o fotógrafo. E lança o alerta: Aproxima-se uma expectável revolução que se prende com a edição, em laboratório, do genoma bovino através do uso da técnica CRISPR-Cas9. Graças ao seu aperfeiçoamento, em 2012, tornou-se possível, em laboratório, cortar e colar letra a letra o ADN de animais e plantas, o que torna possível realçar ou sublimar características de determinado ser vivo sem que haja alteração efectiva daquele que é o seu código genético. 

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©Nikita Teryoshin

A técnica tem sido testada em animais e plantas desde há vários anos — há pouco tempo, um cientista chinês decidiu aplicar o mesmo método em seres humanos, o que deu origem a uma onda de indignação — e não existe garantia de que produtos que são fruto desses testes não tenham estado, temporariamente, em circulação nos mercados, uma vez que a legislação relativa a esta questão surgiu, na União Europeia, apenas há um ano, a 25 de Julho de 2018. Actualmente, é proibida, em espaço europeu, a distribuição de produtos ou subprodutos que tenham sido sujeitos a edição pela técnica CRISPR-Cas9 (estão na mesma categoria legal e sujeitos às mesmas directrizes que pautam os produtos com OGM, organismos geneticamente modificados). Ainda não são conhecidos os efeitos a longo prazo, para a saúde humana e animal, da aplicação deste tipo de “terapia genética” para o equilíbrio do ecossistema, embora estejam a desenvolver-se métodos científicos para a sua determinação

Na China ou nos Estados Unidos da América, porém, não existem restrições. Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido, estado que, em breve, deverá estar fora da alçada da União Europeia, afirma-se um convicto apoiante da introdução da biotecnologia e da abolição de leis anti-OGM no país. Alinhando-se o poder político com a introdução deste tipo de tecnologia nos meios de produção e distribuição, poderá ser uma questão de tempo até que o uso do CRISPR-Cas9 se torne massificado em todo o mundo, impelido pela necessidade de competitividade num mercado globalizado.

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Engenharia genética: uma prática milenar

A “engenharia” genética, encarada como forma de controlo sobre as características genéticas de futuras gerações, tem raízes milenares. Os cruzamentos entre animais domesticados foram, desde cedo, controlados por mão humana para, oportunisticamente, perpetuar propriedades consideradas positivas face às necessidades das pessoas. No período de 150 anos, a produção de leite tornou-se num dos mais eficientes negócios do sector agro-pecuário mundial, segundo a historiadora norte-americana Barbara Orland, autora do ensaio Turbo-Cows: Producing a Competitive Animal in the Nineteenth and Early Twentieth Centuries. Dizem as estatísticas que tal se deve, em larga medida, “à capacidade aparentemente infinita de cada vaca produzir leite”.

Em Portugal, ainda que o consumo de leite esteja a decrescer, um relatório do INE de 2015 refere que, entre 1989 e 2013, “a produtividade do efectivo leiteiro quase duplicou”. “Isto deve-se ao melhoramento que foi conseguido através dos cruzamentos dos melhores exemplares, ao longo de décadas”, explica Jorge Oliveira, presidente da Associação de Produtores de Leite de Portugal, ao P3. “E também à melhoria das condições em que vivem e da qualidade daquilo que comem. Uma vaca feliz produz mais.”

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