Cientistas já conseguem cortar e colar letra a letra do ADN

Avanço na já famosa técnica CRISPR/Cas9 abre portas para a correcção futura de doenças causadas por uma única mutação de um gene. Desde 2012, a nova tecnologia está a mudar por completo o panorama da engenharia genética.

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Uma única alteração numa “letra” da molécula de ADN pode ser suficiente para desarranjar a malha biológica de que somos feitos. É o exemplo de doenças como a fibrose cística, que provoca problemas nos pulmões, e da anemia falciforme. Outras alterações no ADN tornam-nos mais susceptíveis a doenças como a de Alzheimer e o cancro. Agora, um avanço na famosa técnica de edição genética CRISPR/Cas9 conseguiu alterar uma única letra da molécula de ADN em células no laboratório, anuncia um artigo científico publicado na edição desta quinta-feira da revista Nature. O desenvolvimento pode vir a ser usado um dia para o tratamento de doenças de origem genética.

O núcleo das células contém a molécula de ADN usada na produção de proteínas. Para cada proteína existe um conjunto de letras do ADN (a este conjunto chamamos gene) que funciona como um molde para a sua produção. Há muito tempo que o sonho dos biólogos e dos geneticistas era ter uma técnica que permitisse manipular directamente o ADN de uma forma fácil. Assim, seria simples silenciar um gene para fazer experiências rápidas que testassem a sua função. Além disso, uma técnica destas teria um enorme potencial para a saúde.

Em 2012, um artigo publicado na revista Science tornou o sonho realidade. Um mecanismo de imunidade que existe nalgumas bactérias contra os vírus permitiu aos cientistas desenvolver um meio simples e bastante preciso de “corte e cola” genético.

Vale a pena recordar o fenómeno que se passa nas bactérias, cuja complexidade surpreendeu os próprios cientistas. Os vírus atacam-nas tal como o fazem com as células dos humanos: injectam o seu material genético na bactéria e usam a sua maquinaria para se multiplicar.

Mas algumas bactérias têm uma imunidade adaptativa, que lhes permite aprender a reconhecer o ADN dos vírus e destruí-los. Estas bactérias têm umas proteínas chamadas Cas, que capturam pedacinhos de ADN de um vírus que as infecta, integrando esses pedacinhos numa região da molécula de ADN da própria bactéria – esta região chama-se CRISPR. Depois, outras proteínas Cas das bactérias usam esses pedacinhos para reconhecer o ADN dos vírus que voltam a infectar a bactéria, podendo assim destruí-los.

Da descoberta ao alarme

O artigo na Science de 2012 mostrava como as equipas de Emmanuelle Charpentier, do Instituto Max Planck para a Biologia da Infecção, na Alemanha, e de Jennifer Doudna, da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, tinham usado a proteína Cas9, retirada da bactéria Streptococcus pyogenes, para a edição genética.

Esta proteína é capaz de cortar locais específicos de ADN com a ajuda de uma pequena molécula de ARN (que tem uma estrutura semelhante ao ADN e pode ligar-se a ele). Nas bactérias, a pequena molécula de ARN liga-se a um lugar específico do ADN, avisando então a Cas9 para cortar ali o ADN.

As equipas de Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna perceberam que, se construíssem um pedaço de ARN que se ligasse a um gene escolhido pelos cientistas, podiam obrigar a Cas9 cortar a molécula de ADN no sítio do gene seleccionado. Mal a molécula de ADN é cortada, a célula volta a colá-la naturalmente e, para isso, vai adicionando letras ao acaso, que mudam a sequência do gene e o tornam inactivo. Eureka!

Nos anos seguintes, a CRISPR/Cas9 foi adoptada pela comunidade científica pela sua facilidade e precisão. Há cerca de um ano, cientistas chineses aplicaram a técnica para modificar o ADN de embriões humanos, de forma a “editar” um gene cujas mutações provocam a beta-talassemia, uma doença do sangue que pode ser mortal. Os embriões não eram viáveis, mas a experiência mostrou que a técnica podia ser usada para o melhoramento genético humano, já que alterava os genes das células sexuais – os espermatozóides e os ovócitos, ou seja, a linha germinal –, podendo mudar para sempre os genomas das gerações vindouras.

O alerta acabou por levar à organização de uma cimeira em Dezembro último para discutir os limites éticos da técnica. A Cimeira Internacional sobre a Edição do Genoma Humano, que decorreu em Washington, nos Estados Unidos, conclui que era irresponsável a manipulação genética da linha germinal de embriões para gerar bebés. Mas a aplicação da técnica em embriões para fins de investigação deveria poder continuar.

Já em 2016, o Reino Unido aprovou a edição genética de embriões humanos para a investigação científica nos primeiros sete dias de desenvolvimento. Está proibida a sua implantação no útero de mulheres. A aprovação foi específica para experiências que vão tentar compreender mais sobre o desenvolvimento embrionário e, principalmente, a ocorrência de abortos espontâneos.

Estudar doenças, melhorar alimentos

Entretanto, a própria técnica da CRISPR/Cas9 tem vindo a ser melhorada para cometer menos erros, ser mais específica ou para dar outras possibilidades aos cientistas, como substituir pedaços de ADN cortados por outros pedaços de ADN com funções específicas. É neste contexto que surge o trabalho agora feito pela equipa de David Liu, da Universidade de Harvard, em Cambridge, publicado esta quinta-feira na Nature.

No artigo, os cientistas conseguiram editar uma única letra do ADN, o que era impossível até agora. A molécula de ADN é constituída por duas cadeias que estão ligadas entre si pelas letras do ADN – A, T, C e G. Mas estas letras das duas cadeias têm uma correspondência específica: o A de uma cadeia só se emparelha ao T de outra cadeia e o C ao G. Até agora, a CRISP/Cas9 cortava de uma vez as duas cadeias no mesmo local, deixando à célula o trabalho de voltar a colar o ADN, e sem ter controlo na sequência resultante.

No novo trabalho, a equipa de David Liu utilizou mais duas enzimas que foram associadas ao sistema CRISP/Cas9 e que permitiu substituir numa das cadeias de ADN a letra C pelo T ou o G pelo A. Sublinhe-se: apenas as letras C e G é que podem ser substituídas. Este processo acaba por alterar também a letra da outra cadeia, devido ao emparelhamento específico que existe entre elas.

Depois, os cientistas testaram a nova técnica para editar o gene da apoliproteína-E (Apo-E) numa linhagem de células de ratinhos que tinha o gene humano para aquela proteína. A Apo-E está ligada à doença de Alzheimer. Há uma variante normal deste gene chamada E3 e uma outra variante, a E4, aumenta o risco de Alzheimer. A variante E4 do gene tem uma alteração numa única letra do ADN em relação à E3. Os cientistas conseguiram substituir essa letra em parte das células testadas, mudando o gene para a variante saudável E3.

“Os autores não analisaram em que é que esta mudança altera a função da célula. Mas isto mostra precisamente como a tecnologia pode ser usada para melhorar a compreensão de doenças como a Alzheimer”, considera Mathew Blurton-Jones, professor de neurobiologia na Universidade da Califórnia em Irvine, nos Estados Unidos, em declarações distribuídas pela Nature e que não esteve ligado ao estudo.

Ainda há várias limitações na técnica: não é possível editar as letras A e T do ADN; a técnica não foi 100% eficaz em todas as células testadas; e quando se olha mais a jusante, para as possíveis aplicações na saúde, não se sabe como é que se poderá aplicá-la em tecidos de difícil acesso, como o cérebro.

Mas esta é mais uma demonstração da velocidade com que a técnica está a alterar o panorama da engenharia genética. Aliás, nesta mesma edição da Nature há mais dois artigos que relatam outros avanços desta nova linha de investigação, um dos quais da equipa de Emmanuelle Charpentier.

Já se demonstrou que a técnica pode servir para coisas tão diversas como o melhoramento de alimentos. Recentemente, uma equipa da Universidade Estadual da Pensilvânia usou a CRISPR/Cas9 para silenciar uma enzima responsável pela oxidação do cogumelo Agaricus bisporus, muito usado na alimentação. Isto atrasa o aparecimento da cor castanha nos cogumelos, aumentando o seu tempo de vida no supermercado.  

“Estamos todos fascinados com a rapidez com que esta tecnologia se está a desenvolver e continuamos a inventar novas aplicações o tempo todo”, diz por sua vez Perry Hackett, do Centro de Engenharia Genómica da Universidade do Minnesota (EUA), que também não está ligado ao novo trabalho. “No entanto, vai demorar até que todas estas técnicas sejam validades, por isso não é claro como é que irão ser usadas para aplicações terapêuticas.”

Guerra de patentes

Enquanto a investigação avança nos laboratórios, a atribuição da patente da CRISPR/Cas9 nos Estados Unidos está num imbróglio. Esta patente poderá vir a ser uma fonte milionária de receitas. Mas neste momento, o Gabinete de Patentes e de Marcas dos Estados Unidos está a analisar uma disputa de dois pedidos.

Na Primavera de 2012, Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna fizeram em conjunto o pedido de patente da CRISPR/Cas9. Em Dezembro desse ano, a equipa de Feng Zhang, do Instituto Broad pertencente ao Instituto de Tecnologia de Massachusetts e à Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, apresentou outra. Feng Zhang e a sua equipa tinham demonstrado como usar a técnica em células de mamífero, num trabalho que ainda iria ser publicado em Fevereiro de 2013 na Science.

Mas o pedido de patente de Feng Zhang, apesar de ter sido feito posteriormente, recorreu a um programa de avaliação de pedidos de patente mais rápido. O resultado é que Feng Zhang recebeu a patente em Abril de 2014.

Face a este desfecho, a equipa de Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna fez um pedido de interferência contra a patente atribuída ao Instituto Broad. O Gabinete de Patentes dos Estados Unidos aceitou esse pedido de interferência no início deste ano e está a analisar o caso desde 11 de Março. Segundo uma notícia na revista Nature, a decisão pode ser tomada dentro de meses a anos. E poderá sempre haver recurso, qualquer que seja o resultado da decisão do gabinete, arrastando a disputa.

Esta guerra é uma nova faceta da luta por dinheiro que as universidades norte-americanas têm enveredado numa altura em que o financiamento estatal é cada vez mais parco, defende Jacob Sherkow, especialista em patentes e professor na Faculdade de Direito de Nova Iorque. Mas as consequências desta luta pela sobrevivência podem ser preocupantes para a investigação científica.

“Um perigo óbvio do aumento do foco na comercialização é que as instituições académicas vão ver, acima de tudo, a investigação científica como um meio para o lucro”, escreveu o investigador, num comentário de Abril da Nature intitulado “CRISPR: procura do lucro envenena as colaborações”, onde analisava este caso. “Não é difícil imaginar que as disputas de patentes levem os administradores das universidades a pressionarem os cientistas, denegrindo as colaborações com investigadores de instituições concorrentes e pressionando os comités de avaliação das universidades a valorizarem mais as patentes do que as publicações científicas.”

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