Envelhecer é giro, mas só com aplicativo

O sr. Rosário vai-se embora. A cidade vai ficar mais pobre. Menos diversa. Com menos opções. Algumas pessoas, como eu, vão lamentar-se. E passado algum tempo toda a gente se esquecerá.

“Sabe, estou exausto, já não consigo mais, desisto.” Foi assim que o sr. Rosário, dono de um restaurante a que vou há anos, me comunicou que já não aguentava, que regressava à terra, deixando Lisboa, onde reside há mais de 50 anos. Como tem acontecido a tantas outras pessoas, a renda do prédio foi descongelada e vai ser despejado. Durante meses resistiu, advogados, tribunais, enfim, o habitual. Agora não está para mais.

Tem quase 70 anos e um prazer no que faz – “Servir bem e barato, coisa que vai rareando”, diz com orgulho – que se lhe vê no brilho dos olhos. “Mas, sabe, estou velho, já passei por muita coisa, não estou para mais.” E é isto. O sr. Rosário vai-se embora. A cidade vai ficar mais pobre. Menos diversa. Com menos opções. Algumas pessoas, como eu, vão lamentar-se. E passado algum tempo toda a gente se esquecerá. “Quem é que quer saber de gente antiquada e de restaurantes como este fora de moda?”

E é aqui que estamos. Cada vez mais gente desprotegida, à mercê do lucro fácil. Quem tem ou ganha bem dá mais e compra tudo, por vezes nem visita o que adquire, delegando a especulação. É o domínio do capital rentista, explorador, sobre o trabalho, a habitação, a dignidade de existir. Fechar casas e comércio e mandar gente para o sítio de onde vieram, remunerando fundos imobiliários, num país onde tudo é mercantilizado, assente na desigualdade e no esmagamento da vida. “Agora o que vou fazer? É como os elefantes: vou morrer à terra”, graceja, com amargura.

Foi isto na semana passada, quando a redes sociais se encheram de fotos de caras envelhecidas, a nova onda viral por via de um aplicativo digital (app). O sr. Rosário, que mesmo em momentos de aflição nunca perde o sentido de humor, ao olhar para as fotos não resistiu: “Sabe quando tentam ser simpáticos com os velhotes e exclamam: ‘Ai, está muito bem conservado!’ como se fosse o maior elogio do mundo? É assim que vejo essas fotos. Está tudo com ar embalsamado. Mortos-vivos, mas de sorriso doirado.”

Num mundo onde cada vez mais se valoriza o consumo, o sucesso, o dinheiro fácil e a sobrevivência a qualquer preço, envelhecer não é certamente fácil. Há quem diga não se importar. Ou os que se preocupam em excesso. E ainda os que envelhecem sem darem por isso, em negação, e não são nada poucos. Para cada um dos casos existem muitos exemplos, embora a velhice não seja definível por simples cronologia. Há as condições físicas, funcionais, mentais e de saúde. Como acontece ao longo da vida, também no envelhecimento existem desigualdades, reflexo de um somatório de factores históricos, económicos, socioculturais, psicológicos ou biológicos, perceptível até no acesso a asilos, casas de repouso ou sanatórios, para onde mandamos os seres humanos que tiveram a sua utilidade e cuja data de validade num determinado momento a sociedade pede para conferir.

Nas últimas décadas a experiência múltipla, humana, do decorrer do tempo foi sendo substituída pelo tempo exclusivo do capital. A modernidade instaurou o tempo único da produção, da tecnologia, da continuidade e da velocidade. Um tempo único que elimina a espera, a transição, o intervalo, a reflexão, o envelhecer com alguma serenidade, a possibilidade de encontrar outras formas de viver o tempo que temos para viver. “Durante muito tempo achei que o pior da velhice seria não ser desejado. Agora percebi que existe uma coisa ainda pior que é não ser respeitado.”

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