Centeno ou o regresso de Cândido

A candura de Centeno entra em choque com a realidade ou simplesmente existem diferentes percepções da verdadeira situação do SNS?

Quando vi a fotografia de Mário Centeno, com uma rasgada expressão de optimismo e bonomia, nas páginas 2 e 3 do PÚBLICO de ontem, ilustrando a sua entrevista a este jornal, senti-me sugestionado pela evocação de velhas referências literárias. Pois claro. Era o “Cândido” de Voltaire ou talvez mesmo o tutor da personagem, o ultra-optimista dr. Pangloss – o tal Pangloss que decreta, sem margem para dúvidas, que vivemos no “melhor dos mundos possíveis” e, por isso, “devemos cultivar o nosso jardim”.

Verdade seja dita, Centeno é mais subtil e ambíguo do que Pangloss, ou seja, parece mais próximo das contradições de Cândido, mas nem por isso escapa aos jogos de ironia que costumamos associar à criação de Voltaire. Centeno afirma, por exemplo: “Eu não estou certo, para não dizer o contrário, de que quando gerávamos défices tínhamos melhores serviços públicos. Isso não é verdade. Nalguns serviços públicos, como a saúde, por exemplo, temos hoje os recursos públicos no seu nível máximo das últimas décadas, em termos de recursos humanos e financeiros”.

“Eu não estou certo, para não dizer o contrário”, mas afinal pouco importa a Centeno que a percepção pública dessa realidade possa ser a oposta. Palavras definitivas do ministro: “nesta legislatura a despesa em saúde foi 4,6 mil milhões de euros a mais do que a despesa na última legislatura, é um crescimento de 13%”.

A candura de Centeno entra em choque com a realidade ou simplesmente existem diferentes percepções da verdadeira situação do SNS (opondo o ponto de vista do ministro e o dos que utilizam e trabalham no serviço)? E como sair disto, admitindo que os números de Centeno estão certos e a realidade também não é uma ficção – não apenas no que se refere ao SNS mas também a outros serviços públicos atingidos pela precariedade, como a educação, habitação ou transportes?

Numa passagem da entrevista, o ministro confessa que não teve necessidade recente de recorrer pessoalmente ao SNS, mas tem pessoas conhecidas e familiares que o utilizam e nele trabalham. Seja como for, o modelo Centeno – celebrado por fontes insuspeitas como o Financial Times e promissor de novas proezas macroeconómicas a nível europeu – não “encaixa” verdadeiramente no panorama da nossa realidade quotidiana. As exigências orçamentais europeias e os requisitos indispensáveis para conquistarmos uma situação económico-financeira cada vez menos marcada pelos défices excessivos mostram-se contraditórios com as necessidades crescentes e cada vez mais prementes dos nossos serviços públicos.

Aparentemente, não podemos ter tudo ao mesmo tempo – o que até se compreende. Mas o busílis da questão é que o optimismo panglóssico das contas de Centeno contrasta excessivamente com as carências por vezes gritantes e insustentáveis desses serviços. A situação melhorou em relação aos últimos quatros anos? Admitamos que sim. Só que o lastro dessa situação ao longo do tempo e a pressão das novas necessidades foram agravando os custos dessa herança. Como se lê no “Cândido”, o “interesse que tenho em acreditar numa coisa não é a prova da existência dessa coisa”. Ou: “é perigoso ter razão quando o Governo está equivocado”. Ou ainda: “um dia tudo será excelente, eis a nossa esperança: hoje tudo corre pelo melhor, eis a nossa ilusão”.

Não por acaso, esta entrevista de Centeno ocorre num momento em que a Europa se interroga sobre o seu futuro e quando muitas incógnitas ainda permanecem. Apesar das apostas falhadas e dos erros de previsão, a paisagem actual dos poderes europeus é bastante menos inquietante do que se chegou a temer. Mas até onde poderemos iludir-nos com a candura de Centeno?

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