A Ucrânia encantou-se com o seu “candidato virtual” e nem quer saber o que ele pensa

Quase do nada, o comediante Volodimir Zelensky tomou de assalto as presidenciais ucranianas, vencendo a primeira volta. Daqui a duas semanas pode tornar-se Presidente e isso não é uma piada.

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Volodimir Zelenskii venceu na primeira volta das eleições presidenciais STEPAN FRANKO/EPA

A voz grave é reconhecível de imediato. Volodimir Zelensky está num palco perante mil pessoas que enchem uma sala de espectáculos em Bila Tserkva, a sul de Kiev, e, naquela noite de Fevereiro, o seu alvo é o actual Presidente, Petro Poroshenko, que procura manter-se no cargo nas eleições no final do mês seguinte. “Sabem por que é que Poroshenko quer um segundo mandato?”, pergunta Zelensky. Depois de uma pausa de efeito, volta a ouvir-se a sua voz: “Para evitar um primeiro mandato na prisão.” Seguem-se as palmas e muitas gargalhadas.

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A voz grave é reconhecível de imediato. Volodimir Zelensky está num palco perante mil pessoas que enchem uma sala de espectáculos em Bila Tserkva, a sul de Kiev, e, naquela noite de Fevereiro, o seu alvo é o actual Presidente, Petro Poroshenko, que procura manter-se no cargo nas eleições no final do mês seguinte. “Sabem por que é que Poroshenko quer um segundo mandato?”, pergunta Zelensky. Depois de uma pausa de efeito, volta a ouvir-se a sua voz: “Para evitar um primeiro mandato na prisão.” Seguem-se as palmas e muitas gargalhadas.

É isto que Zelensky, de 41 anos, tem feito há quase duas décadas – gozar com os políticos ucranianos e fazer dinheiro com isso. E a candidatura às eleições presidenciais não parece ter mudado em nada a sua forma de actuar. Durante a campanha, Zelensky não fez comícios, fez espectáculos de stand-up comedy; não deu entrevistas, publicou vídeos engraçados nas redes sociais; não fez promessas, apenas quis “escutar” os seus apoiantes.

Funcionou. Zelensky recebeu 30,1% dos votos na primeira volta das presidenciais e está bem colocado para chegar à presidência – a segunda volta está marcada para 21 de Abril, e é disputada com Poroshenko, que alcançou 18,5%.

Se voltar a sair vitorioso, um comediante sem qualquer experiência política ou até empresarial irá ser o líder de um país a braços com uma crise económica profunda, envolvido num duro programa de assistência financeira com o Fundo Monetário Internacional, pressionado para fazer reformas amplas e combater a corrupção endémica. A isto junta-se um conflito armado com grupos separatistas que ocupam parte do território e a permanente ameaça da Rússia, que continua a digerir a deposição do anterior Presidente, Viktor Ianukovitch, em 2014, e tudo irá fazer para impedir a Ucrânia de se integrar na União Europeia e na NATO.

Servo na televisão

Antes de Zelensky havia Vassili Goloborodko. A candidatura de Zelensky está intimamente ligada à popular série que produz e protagoniza, O Servo do Povo, em que o actor desempenha o papel de Vassili Goloborodko, um professor de liceu que é catapultado para uma candidatura à presidência depois de um discurso contra a corrupção política que fez numa aula se ter difundido pela Internet.

Goloborodko é o arquétipo do homem providencial, incorruptível, moralmente superior e, aparentemente, impermeável aos vícios que ferem todos os que o rodeiam. A partir do momento em que o improvável candidato se torna Presidente, a trama passa a consistir numa sucessão de tentativas sos oligarcas de o influenciar, mas a ética de Goloborodko acaba sempre por levar a melhor, nem que por vezes tenha de recorrer a métodos violentos – numa das cenas mais memoráveis, Goloborodko está no meio do Parlamento, tira duas armas de fogo ao seu guarda-costas e atira sobre todos os deputados, presumivelmente corruptos, sentados à sua frente.

A série, que se estreou no final de 2015, tornou-se num fenómeno de audiências, num país que se identifica com muitos dos problemas retratados em O Servo do Povo. Um ano antes das eleições, Zelensky figurava já nas sondagens de opinião como um potencial candidato. A candidatura só foi oficializada na véspera de Ano Novo, ao mesmo tempo que Poroshenko fazia o tradicional discurso de fim de ano. Mas a especulação já fervilhava.

“Pelo menos há um ano estavam a pensar seriamente na candidatura, não foi uma decisão tomada em Dezembro”, diz ao PÚBLICO por Skype a jornalista ucraniana Tetiana Ogarkova, do canal Hromadske, um dos poucos meios de comunicação independentes do país. No final de 2017, um dos advogados de Zelensky registou um partido político chamado O Servo do Povo, algo que reforça a hipótese de a candidatura ser produto de um plano de longo prazo.

Ogarkova nota que antes de a série se estrear, Zelensky era já alguém bastante reconhecível na Ucrânia. Mas era sobretudo encarado como uma voz de protesto. Com O Servo do Povo, diz a jornalista, algo parece ter mudado. “Este produto era diferente porque já não era apenas satírico em relação ao establishment actual, era uma espécie de projecto imaginário de como ele poderia resolver os problemas da Ucrânia”, afirma.

Sem opiniões

Mas o sucesso eleitoral de Zelensky não se deve apenas à sua popularidade como actor, adverte Ogarkova. No fim do ano passado, as sondagens atribuíam-lhe menos de 10% das intenções de voto e continuava a vislumbrar-se uma corrida a dois, entre Poroshenko e a ex-primeira-ministra, Iulia Timochenko. A chave, considera a jornalista, esteve na campanha que arrancou logo após o anúncio da candidatura.

Como muitos exemplos noutras partes do mundo, Zelensky privilegiou a Internet e as redes sociais – Zelensky tem 3,3 milhões de seguidores no Instagram, enquanto Poroshenko tem 223 mil. Procurou também dirigir-se directamente aos seus apoiantes, em vez de contar com a mediação dos media ou dos tradicionais meios de campanha. Lançou, por exemplo, um apelo para que as pessoas lhe enviassem propostas que gostassem de ver no programa de Governo.

Porém, a grande particularidade de Zelensky como candidato – e, segundo vários observadores, a sua vantagem – foi não ter apresentado qualquer proposta. “Zelensky nunca emitiu abertamente as suas opiniões”, observa Ogarkova. Para além de uma promessa de combater a corrupção, não apresentou propostas concretas para nenhuma das grandes questões que têm dominado a Ucrânia, como a integração na UE e na NATO, a guerra no Donbass, as relações com a Rússia, ou a política económica. Desde que apresentou a sua candidatura, Zelensky deu apenas duas entrevistas, diz Ogarkova: uma em casa, ao lado da mulher, só sobre temas pessoais; e outra no canal 1+1, que transmite os seus programas, e que durou apenas 15 minutos.

Na Ucrânia, chamam-no “candidato virtual”, diz a jornalista da Hromadske. Como ninguém sabe o que é que Zelensky defende, todos podem concordar com ele. “O Zelensky em que as pessoas votam no Leste é bastante diferente do Zelenksii em que se vota em Kiev, e votam nele por razões opostas”, explica Ogarkova. E é expectável que isso se mantenha na campanha para a segunda volta, para capitalizar ainda mais com este efeito. O único debate entre os dois candidatos antes da segunda volta terá lugar no Estádio Olímpico de Kiev, uma pré-condição imposta por Zelensky, mostrando que não perde uma oportunidade para transformar a política num espectáculo.

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Comediante Volodimir Zelenskii venceu a primeira volta Valentyn Ogirenko / REUTERS

“Em vez de prometer que políticas irá oferecer aos seus eleitores, Zelensky prometeu-se a si próprio”, resume Volodimir Iermolenko, editor do site Ukraine World, num artigo publicado pelo Atlantic Council. O seu sucesso está relacionado com a conjuntura nacional, em que a confiança nos políticos e nas instituições é muito reduzida – 9% confiam no Governo, segundo uma sondagem do Instituto Gallup, o valor mais baixo do mundo. “As pessoas comuns não se interessam pelos programas eleitorais porque sabem por experiência própria que não vale a pena, porque não correspondem ao que os políticos irão fazer. E é por isso que os eleitores não estão a pedir a Zelensky que explique os seus pontos de vista”, explica Ogarkova.

Apesar de candidatos extravagantes não serem propriamente inéditos na Ucrânia, a postura de Zelensky contrasta com a dos candidatos tradicionais. “Ele mostra-se como um tipo descontraído, um homem comum, o que é uma mudança na política tradicional ucraniana”, observa Iermolenko. Para Ogarkova, a comunicação do comediante “não é condescendente”. “Ele não é a figura do pai, é mais um irmão”, acrescenta.

A sombra do oligarca

O percurso de vida de Zelensky também não dá muitas pistas sobre que tipo de Presidente poderá vir a ser. Durante os protestos na Praça da Independência, em Kiev, entre 2013 e 2014, contra Ianukovitch, o comediante manifestou apoio através de alguns vídeos, embora sempre no registo de sátira aos políticos estabelecidos. Ao contrário de muitas figuras públicas, não é conhecida qualquer participação activa no movimento voluntário. O episódio de maior relevo parece ter sido um vídeo em que Zelensky diz estar disposto a ajoelhar-se perante o Presidente russo, Vladimir Putin, para que acabe com a guerra no Leste.

“Zelensky não é alguém que venha do activismo real, e nunca foi encarado como alguém preocupado com temas verdadeiramente importantes”, diz Ogarkova.

A falta de participação pública passada levanta dúvidas sobre a verdadeira motivação de Zelensky para abandonar uma vida tranquila e bem sucedida de comediante e celebridade, e arriscar a entrada nas areias movediças da política ucraniana. Os seus críticos apontam para Igor Kolomiskii, um influente oligarca que é proprietário do canal 1+1, que transmite os programas de Zelensky. Ambos têm negado a participação do empresário na campanha, embora um dos seus advogados faça parte da equipa do comediante e os guarda-costas de Kolomoiskii tenham sido vistos a acompanhar Zelensky.

Tetiana Ogarkova não acredita que Zelensky seja independente. “Não há razão aparente para que um actor e homem de negócios bem-sucedido entre no jogo político”, explica. Kolomoiskii era proprietário do PrivatBank, o principal banco privado do país, que em 2016 foi nacionalizado pelo Governo, com a justificação de que foi usado para fraude em larga escala e lavagem de dinheiro, e há o receio de que Zelensky reverta a decisão caso chegue ao poder.

A jornalista lembra, no entanto, “que as pessoas vão vigiar de perto o que ele fará se for eleito Presidente” e o desfecho do caso do PrivatBank será especialmente escrutinado.

O mais preocupante, diz Ogarkova, é que tudo indica que Zelensky será um Presidente fraco. “O facto de não ter qualquer visão geral, sequer, do país que quer, torna-o muito permeável a forças exteriores”, observa, embora admita que, até agora, Zelensky se tem rodeado de pessoas “interessantes” e “fiáveis”. Um dos exemplos é o ex-ministro da Economia, Aivaras Abromavicius, considerado um reformista e que é hoje o principal assessor de Zelensky para assuntos económicos.

Porém, falta uma direcção no pensamento do candidato para além da insistência em ser um alguém “diferente”, avisa a jornalista. “Se não se sabe sequer que rumo se quer seguir, não irá haver um líder na equipa. Se ele não é um líder, a questão é saber quem é que é.”