Há dezenas de substâncias químicas à venda na UE com riscos para a saúde humana

Sistema de registo e avaliação existe há 12 anos, mas ainda há até produtos cancerígenos sem qualquer restrição a serem usados na produção de bens de uso comum.

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Os pneus são um dos tipos de produtos nos quais são usados químicos perigosos, sem restrições Adriano Miranda

A União Europeia (EU) tem sido lenta a restringir ou impedir o uso de substâncias químicas com riscos identificados para a saúde humana e para o ambiente. Apesar de a UE ter criado, há uma dúzia de anos, um regulamento reputado como exemplar para o registo, avaliação, autorização e restrição de produtos químicos, conhecido no meio pelo acrónimo Reach, uma análise ao ponto de situação deste sistema de “controlo” feita pela rede de organizações ambientalistas EEB - European Environmental Bureau - mostra que há dezenas de substâncias perigosas, usadas em bens de uso quotidiano, na construção, vestuário, cosmética e outros sectores, que continuam a ser comercializadas.

O registo, por parte das empresas, de quase 22 mil substâncias químicas em 12 anos de existência do Reach não deixa dúvidas sobre a importância deste regulamento europeu aprovado em 2007, ano em que foi também criada a ECHA - Agência Europeia para as Substâncias Químicas, em português. Mas a avalanche de pedidos - que chegou aos 90 mil dossiers - não parece ter sido acompanhada, na ECHA ou nos Estados-membros, pelos recursos necessários para prosseguir as tarefas de avaliação, autorização e, no limite, de restrição do uso de produtos que, comprovadamente, podem causar danos para a saúde de quem os manipula em contexto de trabalho ou dos consumidores finais, ou ainda no meio ambiente, como se pode ver numa lista de 46 substâncias que a EEB divulga esta terça-feira e a que o PÚBLICO teve acesso.

Estas substâncias são a ponta de um iceberg cuja verdadeira dimensão, e riscos, se desconhecem. A ECHA, a quem cabe a avaliação dos dossiers de registo, já analisou dois mil processos, cobrindo 700 substâncias. E assume que, em 70% dos casos, não é submetida a documentação exigida pelo regulamento, o que gera atrasos no seu trabalho. Ainda assim, perante a informação que foi sendo entregue e outra que vem sendo produzida pelo sistema científico mundial, desde 2012, e já no âmbito do Reach, 352 substâncias foram consideradas prioritárias para avaliação até 2018. Mas os Estados-membros, a cujas agências estatais está normalmente entregue esta tarefa, só conseguiram completar, até ao final do ano passado, a análise aprofundada de 94 delas, ou seja, menos de 27%.

O cenário é preocupante, dado que a própria União Europeia assume que 60% (em quantidades comercializadas) das substâncias químicas existentes no mercado são de alguma forma prejudiciais para a saúde e para o ambiente. Mas esta constatação não está a ser transposta para o Reach, que, à lentidão na gestão da informação - assumida também ela pela própria Comissão Europeia, no último relatório sobre o regulamento - soma a lentidão na reacção perante os resultados das avaliações. Um ritmo que a EEB critica, por não ser consentâneo com os princípios da defesa da saúde pública e do ambiente que, entre outros, nortearam a criação deste exigente regulamento.

Dois exemplos, entre 46

A coordenadora do relatório da EEB, Tatiana Santos, dá o exemplo do Resorcinol, uma substância produzida em grandes quantidades e usada em produtos para a pele e para o cabelo. A sua avaliação concluiu que é um disruptor endócrino - com potencial de causar problemas hormonais, portanto - e que, dado o seu uso generalizado, deveria ser colocado na lista europeia de Substâncias de Elevada Preocupação, sujeitas a um regime de restrições no seu uso. Mas até agora nenhuma acção foi tomada, e esta substância está proposta para uma reavaliação.

Outro exemplo incluído nesta lista de avaliações concluídas é o do N-ciclohexil-2-benzotiazol sulfenamida, um aditivo usado, segundo a ECHA, nas indústrias de polímeros e plásticos, de pneus, de automóveis e de materiais de construção, no tratamento de madeiras, em têxteis, móveis, brinquedos, cortinas, calçado, produtos de couro, papel e cartão, nas tintas de equipamentos electrónicos e outros revestimentos. Trata-se de um “todo-o-terreno”, quase ubíquo, segundo esta descrição, mas também está já identificado pelo seu potencial como CMR - cancerígeno, mutagénico e reprotóxico (com impacto no desenvolvimento fetal).

Todos os dias, trabalhadores de todas estas indústrias, e os consumidores dos produtos que elas colocam no mercado, são colocados em contacto com esta substância, que dados os seus riscos, a que há que acrescentar a sua toxicidade muito persistente e muito bioacumulativa, está também proposta para a lista de substâncias que suscitam elevada preocupação, e que ficam por isso sujeitas a autorizações para fins específicos (nos quais o seu impacto potencial seja mínimo). Mas, para já, nenhuma acção concreta foi tomada para o restringir.

O cenário de inacção, perante riscos documentados, a partir de estudos vários, em quase metade das 94 substâncias avaliadas, é quase geral. Apenas 12 daqueles 46 produtos cuja lista a EEB divulga no relatório que publica nesta terça-feira foram alvo de medidas de seguimento para controlo dos seus danos potenciais, o que deixa preocupados os ambientalistas. Que encontram mais motivos para não ficarmos descansados: entre 126 das 192 substâncias que estão, neste momento, em avaliação pelos Estados-membros, faltava informação para “demonstrar a segurança” do respectivo comércio na UE.

Autoridades condescendem

A portuguesa Susana Fonseca, da associação Ambientalista Zero, uma das organizações que faz parte da EEB, considera que as autoridades europeias são demasiado condescendentes com a indústria, e defende que a UE, neste caso, deveria seguir o princípio do “No data, no Market”, previsto no próprio regulamento Reach: ou seja, que deveria impedir que uma dada substância fosse comercializada antes de ser fornecida toda a informação sobre a mesma. “Se o dossier não tem qualidade, essa substância deveria ser suspensa”, insiste Susana Fonseca. Que pede a Portugal mais meios para tarefas de avaliação de substâncias e uma posição clara em defesa da saúde pública e do meio ambiente​, nos comités da ECHA em que são dados pareceres sobre pedidos de autorização de substâncias listadas como de elevada preocupação.

Os ambientalistas notam que a inacção beneficia os infractores e atrasa o desenvolvimento de soluções alternativas, não prejudiciais, por parte de uma indústria poderosa, cujas vendas, segundo dados compilados pela Comissão Europeia, mais do que duplicaram entre 2004 e 2014, e devem duplicar de novo até 2030. E já foi assumido pela própria comissão que as dificuldades no processo de avaliação põem em causa o papel europeu para o cumprimento de um objectivo global, o de conseguir, até 2020 “a gestão ambientalmente saudável dos produtos químicos e todos os resíduos, ao longo de todo o ciclo de vida destes, de acordo com os marcos internacionais acordados, e reduzir significativamente a libertação destes para o ar, água e solo, para minimizar seus impactos negativos sobre a saúde humana e o meio ambiente”.

Numa nota introdutória ao relatório, o secretário-geral da European Environmental Bureau, Jeremy Wates, desafia as entidades oficiais da UE a elevar o nível de exigência e de transparência na informação sobre estes produtos. “A exposição a substâncias químicas está a causar uma pandemia silenciosa”, afirma, citando um relatório recente das Nações Unidas, organização que inicia esta terça-feira, precisamente, mais uma reunião, no Uruguai, para a aprovação de uma estratégia global para a sua gestão.

“Em ano de eleições europeias, e com o populismo a aumentar, o Reach deveria ser uma demonstração emblemática daquilo que a União Europeia pode fazer pelos seus cidadãos, em defesa da saúde pública e do meio ambiente, enquanto posiciona a indústria europeia na linha da frente da transição para um mundo mais limpo e mais seguro”, considera Jeremy Wates, desafiando os reguladores a agirem com “a urgência” que o caso exige.

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