Confessar-se, pelo menos, uma vez por ano

A queixa actual é contra a obrigação de se confessar antes de comungar. Tanta gente a comungar e tão pouca a confessar-se.

1. O título deste texto pode parecer ridículo por anacrónico. Quem desejar conhecer as posições oficiais da Igreja sobre os Sacramentos deve ler os textos do Vaticano II, o Código de Direito Canónico (1984) e as orientações de reforma da Igreja do Papa Francisco, expressas nos documentos por ele assinados. Se mantenho este título, é porque ele serviu para dar cobertura a uma história de terror, para distorcer a prática sacramental da Igreja e ocultar a própria essência do cristianismo. Por outro lado, a discussão actual, em torno dos ministérios ordenados, não se deve deixar polarizar, apenas, por carências funcionais da pastoral actual da Igreja, embora a situação seja calamitosa.

O título desta crónica tem uma história. O IV Concílio de Latrão é assim chamado porque foi realizado em Roma, na Basílica de S. João de Latrão, a cátedra do Papa. Aconteceu entre 11 e 30 de Novembro de 1215.

Esta iniciativa de Inocêncio III teve a maior participação de bispos de toda a Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna. É considerado, pelos historiadores, como o ponto mais alto e importante do papado do século XI ao século XIII [1].

Compareceram 404 bispos, 71 primazes e metropolitas, 800 abades e priores. Além disso, cada bispo possuía uma numerosa comitiva. Os patriarcas orientais, embora convidados, não compareceram, mas todos os reinos cristãos enviaram representantes.

Este concílio confirmou as magníficas orientações de reforma da Igreja do grande Papa Inocêncio III; deixou-se, porém, enredar nas obsessões da Quinta Cruzada e das medidas violentas contra os albigenses. Deu, no entanto, amplo espaço à doutrina sobre a Eucaristia e o sacerdócio ministerial, acolhendo o conceito de transubstanciação, cunhado pela primeira escolástica. A obrigação da confissão anual e da comunhão pela Páscoa foram as ordenações mais notadas do concílio e mais duradoiras.

O historiador Jean Delumeau estudou o imenso problema histórico da confissão em países católicos [2]. Foi, durante séculos, um tema central da Quaresma. A confissão sacramental, uma vez por ano, era o mínimo dos mínimos, em regime de cristandade. A maior ou menor frequência dependia das diversas correntes de ascética e mística. Teve uma boa aliança na devoção ao Sagrado Coração de Jesus, expressa na recomendação e nas garantias espirituais das primeiras sextas-feiras. Mas a desobriga, para poder comungar pela Páscoa da Ressurreição, enchia as Igrejas com filas intermináveis. Era mesmo, apenas, uma desobriga.

2. A queixa actual é contra a obrigação de se confessar antes de comungar. Tanta gente a comungar e tão pouca a confessar-se.

Parece-me que estamos perante um grande equívoco. A celebração da Eucaristia é, do começo ao fim, o grande sacramento da confissão dos pecados e da misericórdia de Deus. Só há Eucaristia, como acção de graças, por Deus não ter deixado Jesus de Nazaré vítima de um assassinato. O testemunho que as mulheres receberam é que, afinal, a morte não foi a última palavra sobre a figura mais extraordinária de toda a história conhecida da humanidade. Sem o reconhecimento de que Jesus continua nosso contemporâneo, não é possível celebrar a Eucaristia.

O assassinato do Nazareno teve responsáveis entre os seus adversários e, pelo medo, abandono dos seus discípulos. Esse problema ficou resolvido antes do último momento do crucificado: Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem. É evidente que os discípulos reconheceram o seu erro e o seu pecado.

Quando celebramos a Eucaristia, damos graças a Deus por Jesus Cristo e por tudo o que de magnífico realizaram tantas pessoas ao longo da história, antes e depois do seu aparecimento histórico.

Se nas celebrações fôssemos capazes de reconhecer a beleza e a bondade do mundo, testemunhada de mil maneiras, mas evidente em pessoas que passaram a vida ao serviço da alegria dos outros, teríamos muitos evangelhos para contar, muita alegria a transmitir e a partilhar. Poderíamos mostrar que Deus é a nossa festa e nós a tornarmo-nos uma festa para Deus e uns para os outros. Se no coração da própria Eucaristia proclamamos que ela é pela remissão dos pecados de todos, porque não aceitar que somos pecadores, que estragamos a nossa vida e a vida dos outros, quando a misericórdia nos é oferecida para alterar o rumo que demos e damos à nossa vida? Uma celebração eucarística é o espaço de uma revolução espiritual. Quem não quer entrar nessa aventura pode ir à Igreja, receber a hóstia, beber do cálice, mas não foi à Missa real. Participou num ritual, mas não entrou na sua alma.

3. É por tudo isso que não posso aceitar que a confissão dos pecados, ao longo da celebração, seja um faz de conta, não valha nada. É uma oferta de absolvição geral para quem a acolhe como pura graça de Deus e com o desejo de a deixar frutificar na sua vida.

Neste momento, estão a reunir-se duas grandes tragédias espirituais. Por um lado, não se quer rever a presidência das celebrações eucarísticas, para a qual homens casados e mulheres estão excluídos. Por outro, os padres são cada vez menos e, segundo o regime actual, em muito países, tornam-se uma espécie em extinção: é a lógica da natureza. Entretanto, em muitas zonas do país e em muitas famílias, tradicionalmente católicas, as novas gerações nem à Missa vão nem apresentam ao baptismo os seus filhos.

Tudo isto deve ajudar-nos a voltar a questões essenciais. A primeira é a do pensamento interrogativo e da oração. As lideranças da Igreja não podem continuar presas a épocas de cristandade, que já não existem, nem tentar a ficção de que existem porque ainda subsistem minorias rituais.

Impõe-se uma iniciação à descoberta do próprio sentido da vida. Sem esse trabalho, não nos damos conta daquilo que Paulo descobriu em Atenas, pela via de autores gentios: na divindade vivemos, nos movemos e existimos [3]. Ao tomar consciência do fundo da realidade em que vivemos, pode nascer a oração, isto é, a abertura ao mistério infinito que nos envolve e nos vivifica.

É dentro desse questionamento que podemos acolher a revelação que comoveu o próprio Jesus: somos amados, estamos no coração de Deus [4], aconteça o que acontecer.

[1] Cf. Hubert Jedin, Manual de Historia de la Iglesia IV, Herder, Barcelona, 1973
[2] Aquilo em que acredito, Círculo de Leitores, Le Péché et la peur, Fayard, 1983; L’aveu et le pardon. Les difficultés de la confession. XIIIe-XVIIIe siècle, Fayard, 1990
[3] Act 17, 28
[4] Lc 10, 17-22

Sugerir correcção
Comentar