Liturgia da discriminação: a “cura” da homossexualidade

Não podemos aceitar que as crenças religiosas (ou qualquer outra ideologia) entrem no laboratório, interfiram com a metodologia e ignorem o acumular de evidência científica sobre um dado tema.

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Sharon McCutcheon/Unsplash

Uma reportagem da TVI deu recentemente a conhecer ao público a existência de um submundo no qual pessoas homossexuais são aconselhadas por psicólogas/os a investir na alteração da sua orientação sexual. Atropelando desenfreadamente princípios gerais e específicos do Código Deontológico da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), a psicóloga em causa pratica uma liturgia da discriminação sustentada numa interpretação religiosa que em nada se assemelha a psicoterapia empiricamente validada. Não é a primeira vez que ouvimos falar de Maria José Vilaça, da sua trupe da Associação de Psicólogos Católicos e das suas posições em relação à homossexualidade, inteiramente refutadas pela ciência. Podemos concordar que ciência e religião não são mutuamente exclusivas e que um profissional da ciência pode ser simultaneamente religioso — como afirmava Stephen Jay Gould no livro Rocks of Ages (1999), são “non-overlapping magisteria”. Não podemos, contudo, aceitar que as crenças religiosas (ou qualquer outra ideologia) entrem no laboratório, interfiram com a metodologia e ignorem o acumular de evidência científica sobre um dado tema.

A homossexualidade deixou de ser considerada uma doença em 1973, eliminada totalmente do manual de diagnósticos de doenças mentais em 1987, medida reiterada em 1990 pela Organização Mundial de Saúde. Não precisamos da reportagem da TVI para saber que a homofobia está viva em alguns profissionais de saúde e que aqueles que praticam “terapia de conversão” (criminalizada em vários países) têm crenças homofóbicas. Para além da conclusão lógica de que se um fenómeno não é uma doença não carece de tratamento, tal como afirmou a OPP e a Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica (SPSC) a evidência científica é inequívoca: práticas clínicas de alteração da orientação sexual são ineficazes e prejudiciais, aumentando a sintomatologia depressiva, ansiosa e ideação suicida. De resto, já no final dos anos 60 o psiquiatra Afonso de Albuquerque tentou alterar a orientação sexual de uma amostra de homossexuais, e precisou apenas de dois anos para concluir que a prática não era eficaz (ver Homossexuais no Estado Novo, de São José Almeida, p. 60).

Prestes a entrar na terceira década do século XXI, continuamos a discutir a naturalidade da atracção pelo mesmo sexo. Essa resistência em aceitar a homossexualidade como variante natural da diversidade animal e humana continua forte em alguns circuitos, ao qual o antropólogo Volker Sommer se refere como a dificuldade em distinguir a naturalidade e a moralidade de um fenómeno. É hoje indiscutível que o que culturalmente chamamos “homossexualidade” é ubíquo no reino animal (ver Evolution´s Rainbow de Joan Roughgarden, para uma revisão exaustiva), e que se entende, pelo estudo de gémeos monozigóticos, que tem, como todo o comportamento sexual, um fundamento biológico e evolutivo (ver Evolution and Human Behavior de John Cartwright, p.312-322). Acresce a isso a dimensão cultural inerente à natureza humana, onde a diversidade sexual e de género se têm manifestado ao longo do tempo e da geografia (ver Born to be Gay: a history of homossexuality, de William Naphy).

Mas há esperança: ainda que seja intolerável a existência de profissionais de saúde com concepções obsoletas sobre diversidade sexual humana, este episódio serviu para medirmos a temperatura social. Ficou cristalino de que lado deve estar a vergonha, quem se deve levantar e quem não tem lugar à mesa.

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