Familiares de Menezes receberam quase dois milhões em offshore quando este era autarca

Ministério Público considera que dinheiro terá sido “vantagem indevida” dada ao então presidente da Câmara de Gaia, mas acaba por arquivar processo por falta de provas.

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Luís Filipe Menezes está afastado desde 2013 da política activa. Dato Daraselia / PUBLICO

Foram duas transferências com um valor global de quase dois milhões de euros que tiveram origem numa misteriosa sociedade offshore chamada Longe Company LLC, sedeada nos Estados Unidos, que não se conseguiu apurar a quem pertence. O dinheiro desaguou em Novembro de 2008 numa conta, aberta uns dias antes, na sucursal offshore de Macau do BCP, em nome do pai de Luís Filipe Menezes, então presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, e em nome de um dos filhos do autarca, Pedro. Depois de muitas voltas uma parte substancial do dinheiro foi encaminhado para Portugal e acabou por servir para comprar em 2012 um luxuoso apartamento na Foz, no Porto, onde vive o ex-presidente do PSD.

As informações constam num processo que correu no Departamento de Investigação e Acção Penal do Porto em que Menezes foi investigado por vários crimes, incluindo corrupção, e que acabou arquivado em Julho passado por falta de provas. Vários pedidos de cooperação internacional conseguiram desvendar o circuito do dinheiro, a maioria do qual entrou em Portugal, em Abril de 2012, numa conta do pai de Menezes, aberta uns dias antes, no Banco Espírito Santo. Os 1.435.600 euros foram regularizados do ponto de vista fiscal com o recurso ao terceiro Regime Excepcional de Regularização Tributária (RERT III), que implicou o pagamento de 107.670 euros de impostos.

Apesar de formalmente o dinheiro ter sido enviado para contas do pai de Menezes e de um dos seus filhos, o Ministério Público (MP) não acredita que fosse realmente deles. A conclusão foi retirada depois de analisados os rendimentos declarados pelos dois familiares de Menezes ao longo de vários anos. Por isso, a procuradora titular do inquérito, Maria Adelaide Morais, escreve numa carta rogatória a pedir elementos às autoridades judiciárias norte-americanas que “se encontra demonstrada a impossibilidade absoluta” dos quase dois milhões de euros serem do pai de Menezes e do filho Pedro já que “os mesmos não apresentam proveitos que, minimamente, o sustentem”.

Nesse pedido de cooperação, com data de Novembro de 2016, a procuradora escreve: “Do confronto de todos os elementos resultam indícios de que Luís Filipe Menezes, em razão do cargo desempenhado ou por causa dele, terá auferido vantagens indevidas que escamoteou, canalizando-as, através de seu pai e filho, pelo menos em parte, para conta bancária no exterior”.

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O dinheiro, que entrou na conta dos familiares de Menezes no BCP de Macau, passou para outra conta do advogado Amorim Pereira, - que foi o director financeiro da campanha de Menezes à câmara do Porto, em 2013 - na mesma sucursal offshore, e depois andou a saltar entre duas contas no Luxemburgo, ambas em nome do pai de Menezes e do filho Pedro. O advogado Amorim Pereira aparece a realizar a maior parte das transacções bancárias, como representante daqueles familiares do autarca. (ver infografia)

Numa informação de Fevereiro de 2016 da PJ, que investigou o caso, afirmava-se que era “convicção da investigação” que a conta do BES e as do Luxemburgo não eram controladas pelos efectivos titulares, sendo “Luís Filipe Menezes o detentor do respectivo controlo por intermédio de Amorim Pereira, procurador da conta com plenos poderes no que respeita a operações bancárias”.

O MP acreditava que a complexidade dos movimentos servia para encobrir a verdade. “As sucessivas transferências entre contas bancárias provenientes e com destino a terceiros relacionados directamente com Luís Filipe Menezes apontam para que todos eles tenham actuado em nome e benefício deste, procurando, através do número de intervenientes e das operações já detectadas, obstar à reconstituição dos movimentos financeiros, entretanto, efectuados e proceder à circulação e integração dos activos em causa, de modo a impedirem a descoberta da sua verdadeira proveniência”, escreve a procuradora em vários pedidos de cooperação internacional.

No despacho de arquivamento do caso, a magistrada conclui que “toda a panóplia de contas bancárias utilizadas e bem assim a localização das entidades bancárias e os intrincados e sucessivos movimentos levados a cabo” se iniciaram com duas transferências ocorridas em Novembro de 2008. Ambas foram ordenadas pela empresa Longe Company LLC, em Delaware, um estado norte-americano que funciona como um centro financeiro offshore. Foram pedidas às autoridades judiciária locais informações sobre a empresa, mas, na resposta, nem sequer foi identificado o nome do agente, o único que aparece nos registos oficiais. Apenas se refere que “os agentes, quando registados, tinham morada em Gibraltar” e que a empresa se encontra “cancelada, por não existência de agente registado e por não pagamento de impostos/taxas”. O MP também tentou obter informações através dos dois bancos envolvidos nas duas operações: o ABM Amro Bank, com sede em Amesterdão, e o Banco Privado Português, Cayman. Mas todas as diligências se revelaram infrutíferas, tendo a procuradora decidido arquivar o inquérito. Isto ao abrigo de uma norma que determina esse desfecho quando não tenha sido “possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os agentes”.

Contactado pelo PÚBLICO, Luís Filipe Menezes insiste que “nunca teve um tostão no estrangeiro” e garante que os dois milhões nada têm a ver consigo. “O dinheiro é do meu pai. Se tinham alguma dúvida deviam ter chamado o meu pai e a mim e nunca o fizeram”, afirma o antigo presidente do PSD. De facto, nem Menezes, nem qualquer familiar seu foram inquiridos no processo, que nunca teve arguidos. Menezes insiste que a mãe vendeu em 1971 um grande colégio que fundou em Ovar ao Estado, na altura por mais de oito mil contos. “Hoje seria o equivalente a dois ou três milhões de euros”, insiste, sem explicar porque é que o dinheiro andou a saltitar entre várias contas no estrangeiro. A venda é referida no processo, mas o MP não encontrou na Conservatória do Registo Predial de Ovar elementos sobre essa operação. Só de uma outra feita, dois anos mais tarde, entre a Câmara de Ovar e o Ministério da Educação.

Amorim Pereira chegou a ser alvo de escutas entre Março e Junho de 2016, mas das intercepções não resultaram elementos com relevância para o inquérito. Segundo o próprio Amorim Pereira, que garante o “desconhecimento absoluto” da investigação, nessa altura já não mantinha qualquer contacto com Menezes ou seus familiares. “Não tenho qualquer contacto com o Dr. Menezes ou com o pai há mais de seis anos”, assegura. Amorim Pereira recusa pronunciar-se sobre os factos apurados na investigação, argumentando que “todas as intervenções” que teve “foram como advogado”, logo estão abrangidas pelo sigilo profissional.

Mais de 630 mil euros foram transferidos em 2010 da conta do advogado, em Macau, para a uma conta no banco suíço UBS, em nome da primeira ex-mulher de Menezes, Maria Cândida Tavares. O divórcio foi decretado em Fevereiro desse ano e as transferências ocorrem entre Junho e Dezembro, saindo o dinheiro dessa conta no próprio dia ou nos dias seguintes para um destino não identificado no processo. Contactada pelo PÚBLICO, Maria Cândida Tavares insiste que não sabe nada sobre o tema. “Não faço a mínima ideia disso. Estou de boca aberta”, reage. O filho Pedro atendeu o telefone, mas desligou, argumentando estar numa reunião. E não voltou a atender.

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