Odette Ferreira (1925-2018), pioneira na investigação e luta contra a sida

Farmacêutica e investigadora fez parte da equipa que identificou um segundo tipo de vírus da sida em 1986, apenas três anos depois da descoberta de um vírus que estava a destruir o sistema imunitário dos doentes.

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Nuno Ferreira Santos/ Arquivo

A história do vírus da sida só fica completa se se incluir o nome de Odette Ferreira, farmacêutica, professora universitária e investigadora que fez parte da equipa luso-francesa que descobriu e identificou o VIH-2 em meados da década de 80. Odette Ferreira morreu este domingo aos 93 anos, noticiou a agência Lusa. O corpo irá segunda-feira às 19h para a Igreja do Campo Grande, em Lisboa, e a missa será na terça-feira às 15h.

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A história do vírus da sida só fica completa se se incluir o nome de Odette Ferreira, farmacêutica, professora universitária e investigadora que fez parte da equipa luso-francesa que descobriu e identificou o VIH-2 em meados da década de 80. Odette Ferreira morreu este domingo aos 93 anos, noticiou a agência Lusa. O corpo irá segunda-feira às 19h para a Igreja do Campo Grande, em Lisboa, e a missa será na terça-feira às 15h.

“É a farmacêutica mais importante a nível nacional na área científica por causa dessa descoberta”, sublinha Nuno Taveira, investigador do Instituto de Investigação do Medicamento da Faculdade de Farmácia de Lisboa e que começou a trabalhar com Odette Ferreira pouco depois de ela ter isolado e identificado o VIH-2 em conjunto com uma equipa francesa.

Odette Ferreira, da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, levou para França amostras de sangue de doentes que estavam acamados no Hospital Egas Moniz, em Lisboa, acompanhados aí pelos médicos José Luís Champalimaud e Kamal Mansinho. “Eram doentes da Guiné-Bissau com sida. Tinham sida mas não se conseguiam descobrir anticorpos contra o VIH-1. E a professora Odette, que andava à procura desses anticorpos – era ela quem fazia o diagnóstico dos doentes –, não os encontrava e intuiu que seria um vírus novo”, recorda Nuno Taveira. “Levou amostras de doentes para França, para o Instituto Pasteur, e em conjunto com cientistas franceses isolou o VIH-2.”

Tratava-se da equipa de Luc Montagnier, no Instituto Pasteur, em Paris, que em 1983 já tinha isolado um vírus em doentes com sida, ou síndrome da imunodeficiência adquirida humana. É preciso recordar que a sida, uma nova doença infecciosa que estava a destruir o sistema imunitário dos doentes, só tinha chamado a atenção como tal em 1981. A descoberta do vírus que a causava foi publicada em 1983 na revista Science. Luc Montagnier e Françoise Barré-Sinoussi estavam entre os autores, e viriam ganhar o Prémio Nobel da Medicina de 2008 precisamente pela descoberta do vírus da imunodeficiência humana. “A professora Odette trabalhou com Françoise Barré-Sinoussi, que era a virologista de serviço”, diz Nuno Taveira, que foi convidado em 1988 para integrar um novo laboratório que Odette Ferreira estava a montar de segurança máxima para o VIH-1 e VIH-2.

Graças à intuição de Odette Ferreira de que haveria um segundo tipo de vírus da sida, a descoberta do VIH-2 tornou-se uma realidade em 1986. Essa descoberta foi anunciada ao mundo nesse ano, primeiro, em Março, na revista Comptes Rendues de l’ Académie de Sciences de Paris – e, além de Luc Montagnier, Odette Ferreira, José Luís Champalimaud, Jaime Nina (também do Hospital Egas Moniz) e Kamal Mansinho estão entre os seus autores. Mais tarde, em Julho, a descoberta foi também publicada na revista Science, com Odette Ferreira e José Luís Champalimaud novamente entre os autores.

Também o investigador em bioquímica de vírus (incluindo o VIH) Miguel Castanho, da Faculdade de Medicina de Lisboa e do Instituto de Medicina Molecular, destaca o papel de Odette Ferreira na investigação do vírus da sida. “Foi pioneira na descoberta e identificação do VIH-2 e isso abriu o caminho para que depois se pudesse estudar a biologia do vírus – como é que ele se multiplica – e isso, por sua vez, abriu caminho para estudos comparativos entre o VIH-1 e o VIH-2. São vírus parecidos, mas com algumas diferenças que dão origem a doenças que são parecidas mas têm também diferenças”, nota Miguel Castanho, acrescentando que esses estudos comparativos permitiram identificar o impacto que cada um dos vírus tem na sida.

“Foi uma pessoa que se dedicou muito à investigação e à importância que a investigação tem para a compreensão da doença e como é preciso mais conhecimento dos seus mecanismos para depois actuar sobre os seus efeitos”, diz ainda Miguel Castanho. “Era uma académica de corpo inteiro.”

Luta contra a sida

Mas voltemos um pouco atrás no percurso de Odette Ferreira. Depois de se ter formado em ciências farmacêuticas, e já casada, foi estagiar durante três meses no Instituto Pasteur. Nos anos 70, como lembrava na sua biografia Uma Luta, Uma Vida – Nem Precisava de Tanto, de Sandra Nobre (edição Sopa de Letras, 2014), não foi fácil convencer o marido a ir para Paris. Mas conseguiu, e isso deu-lhe os conhecimentos necessários na área da epidemiologia.

Com o 25 de Abril em Portugal, abriu-se um espaço para que Odette Ferreira ocupasse vários cargos na Faculdade de Farmácia: foi membro do Conselho Pedagógico, até 1976, e membro do Conselho Directivo, entre 1979 e 1981. Acumulava essas funções com as de professora, enquanto continuava a investigação em Paris, e preparava a tese de doutoramento, que concluiria em 1977.

Foi num congresso de epidemiologia em Lausanne, na Suíça, que ouviu falar pela primeira vez da sida. Em 1984, voltou a estagiar no Instituto Pasteur, com Luc Montaigner e Leon de Minor, e aprendeu técnicas de identificação do vírus da sida, conta ainda a sua biografia. Nesse mesmo ano, começou os primeiros estudos seroepidemiológicos na Faculdade de Farmácia de Lisboa. O resto é a história que se conhece da identificação do VIH-2.

“Lembro-me que havia quem mudasse de passeio só para não se cruzar comigo. Na faculdade, o director não queria que eu trabalhasse, com medo que eu infectasse alguém. As pessoas achavam que se transmitia com um aperto de mão”, lembrava a investigadora na sua biografia.

Entre 1992 e 2000, Odette Ferreira foi coordenadora da Comissão Nacional de Luta Contra a Sida, cargo que exerceu por nomeação do ministro da Saúde, tendo desenvolvido projectos com impacto significativo na prevenção e disseminação da doença. O projecto da sua autoria de maior impacto nacional e internacional foi a troca de seringa nas farmácias, denominado “Diz não a uma seringa em segunda mão”, para diminuir o risco de transmissão do VIH e de outras doenças transmissíveis (hepatites B e C) na população toxicodependente por via endovenosa. Lançado em 1993, esse foi o primeiro programa de troca de seringas no país, traçando um plano de acção que consistia na entrega, em 2500 farmácias, de 200 mil kits, com um preservativo, um toalhete desinfectante e uma seringa esterilizada em troca de uma seringa usada – como se conta na sua biografia.

Em 1995, um estudo do Centro das Taipas – centro multidisciplinar em Lisboa na área das dependências patológicas – dava conta de uma diminuição acentuada do número de novos casos de seropositividade para o VIH, apontando o programa como responsável pelos resultados.

Alertou não só os políticos como a população para o risco do vírus da sida. O que a levou, por exemplo, ao Casal Ventoso, conhecido supermercado de droga em Lisboa nos anos 1990, para avisar os toxicodependentes para o risco da infecção.

“Teve um papel extraordinário à frente da Comissão Nacional de Luta Contra a Sida. Foi numa altura em que se equiparam unidades hospitalares para lidar com doentes com VIH, com dinheiro da Comissão Nacional de Luta Contra a Sida”, refere ainda Nuno Taveira.

Foi reconhecida em vida pelo seu trabalho. Em 2017, já jubilada, a Faculdade de Farmácia de Lisboa deu o seu nome a um dos auditórios. Na altura, Odette Ferreira admitiu que, “de todos os prémios e distinções” que já tinha recebebido, “este é o que mais me toca o coração, por ser o da minha faculdade”. Em 2012 recebeu a Medalha de Ouro da Ordem dos Farmacêuticos, em 2010 deu nome a um prémio de investigação por farmacêuticos. O Governo francês condecorou-a como Chevalier dans l’Ordre des Palmes Academiques (em 1975) e Chevalier de la Légion d’Honneur (em 1987). Em Portugal, já tinha recebido o grau de comendadora da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada (em 1988) e, em Janeiro deste ano, o Presidente da República, numa cerimónia reservada, condecorou-a com a grã-cruz da Ordem da Instrução Pública. Com Inês Chaíça