Odette Ferreira, a mulher que a investigação da sida ajudou a mudar: “Antes era uma betinha”

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Nuno Ferreira Santos

Pioneira na investigação e na luta contra o VIH/sida em Portugal, Odette Ferreira ajudou a colocar o país num lugar cimeiro na ciência a nível mundial com a identificação do vírus da imunodeficiência humana tipo 2. Depois de anos a desempenhar o papel de mãe e de esposa praticamente a tempo inteiro apostou numa carreira académica e foi estagiar para Paris, onde ouviu falar da sida pela primeira vez.

Numa altura em que em Portugal pouco se sabia sobre a infecção, Odette Ferreira avançou com os primeiros estudos seroepidemiológicos e começou a alertar os políticos e a população. A investigadora, que chegava a ir ao Casal Ventoso avisar os toxicodependentes para o risco da infecção, acabou por presidir à Comissão Nacional de Luta Contra a Sida e  montou o primeiro programa de troca de seringas no país. A ex-ministra da Saúde, Maria de Belém Roseira, recorda o papel de Odette Ferreira na desconstrução de “hipocrisias e falsos moralismos” e João Cordeiro, ex-presidente da Associação Nacional de Farmácias, lembra-se bem da sua energia. “Se um ministro se atrevesse a chumbar um projecto em que acreditava, ela não saía do seu gabinete até que ele mudasse de opinião. É uma força da natureza”. Aliás, a professora Odette, como ficou conhecida, ainda hoje se mantém activa, aos 89 anos. Esta semana foi homenageada na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa (FFUL) com o lançamento da sua biografia “Uma Luta, Uma Vida – Nem precisava de tanto”, de Sandra Nobre (edição Sopa de Letras). O PÚBLICO divulga alguns excertos da obra.

Nos anos 70 do século XX, foi a primeira farmacêutica a registar um laboratório sem ser médica
Tinha concluído o bacharelato e não prosseguira, porque o pai achou que não era próprio para uma rapariga ir sozinha para fora estudar. Quando, em 1968, o Decreto-Lei n.º 48 696 readmitiu o curso complementar de Farmácia em Lisboa e lhe devolveu a designação de «faculdade», Maria Odette «não quis ficar pela metade» e decidiu graduar-se. Determinada a ter o seu próprio laboratório, foi às Finanças inscrever-se, como era mandatório. Disseram-lhe que não podia, que os farmacêuticos não estavam autorizados, de acordo com as diretrizes da Ordem dos Médicos. Exigiu que lhe mostrassem a lei no Diário da República. Não estava publicado. Teimou até levar a iniciativa avante. Foi a primeira a registar um laboratório sem ser médica.

Ida para Paris onde estagiou no Instituto Pasteur
Foram de carro para Paris e aproveitaram uns dias de férias em família, antes de Maria Odette ingressar por três meses no Instituto Pasteur. Não tinha sido fácil convencer o marido. Foi durante um almoço que o adido cultural da embaixada de França em Portugal, Dr. Piet, com quem mantinha boas relações, reforçou o convite para concorrer a um estágio, em Paris, através de uma bolsa do Serviço Cultural da Embaixada de França, com vista a fazer o doutoramento. A vida mudou – mudou-a. «Antes era uma betinha; de repente, ao sair do país e deixar a minha família, tornei-me uma pessoa prática», lembra.

Regresso a Portugal, após o 25 de Abril de 1974
O 25 de Abril de 1974 agitou o país, e as estruturas académicas não ficaram incólumes. Estava em Paris quando se ergueram cravos vermelhos a reclamar a liberdade em Portugal. Os anos que se seguiram foram de luta, a todos os níveis. Era preciso pôr ordem na Faculdade de Farmácia, e os cargos sucederam-se, a partir daí: membro do Conselho Pedagógico, até 1976, e membro do Conselho Diretivo, entre 1979 e 1981.Em simultâneo, lecionava, continuava a investigação em Paris, e preparava a tese de doutoramento, que concluiria em 1977.

Anos 80 e advento da sida
A década de 80 do século XX foi abalada pelo aparecimento da SIDA. É durante um congresso a que assiste, em Lausanne, na Suíça, a convite  de Francine Tanner, uma referência em epidemologia hospitalar, que integrou o júri da sua tese de doutoramento, que toma conhecimento da infeção, observada clinicamente pela primeira vez em 1981. Interessou-se de imediato. Em 1984, em Paris, a estagiar com Luc Montaigner – da Unité d’Oncologie Virale – e Leon de Minor – do Service des Enterobacteries, do Instituto Pasteur –, aprendeu técnicas de identificação do Lynphadenopathy associated virus (LAV), um dos agentes etiológicos da SIDA. Começou do zero, nas salas despidas de material da Faculdade de Farmácia. Aos poucos, dispunha da mesma tecnologia usada no laboratório de Luc Montaigner. Ao lado da equipa de José Luís Champalimaud, tentava encontrar uma resposta para a pergunta: de que morriam aqueles doentes? Sem condições nem proteção, «a vontade era tanta que fazia-se o que se podia e arriscava-se a vida». Quando lhe perguntavam se não tinha medo de se infetar, dava uma imagem que sempre a acompanhou: «O Pasteur também não teve medo e trabalhava de fato».

As suspeitas apontavam para doentes infetados pelo vírus da imunodeficiência humana – na altura denominado «LAV/HTLV III» –, mas os indícios contrariavam essa teoria: homens e mulheres heterossexuais, sem toxicodependência, diarreias crónicas, tuberculose, sem uma história que pudesse sugerir o modelo de um doente europeu ou americano, de acordo com os critérios propostos pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC), de Atlanta, nos Estados Unidos da América, para o diagnóstico de SIDA. Os primeiros estudos seroepidemiológicos tinham sido iniciados em 1984, em parceria com o Departamento de Microbiologia da FFUL. Aprendeu com Denise Guetard a isolar o LAV. Foi chamada à atenção por estar a usar um soro seronegativo, a perder tempo e a gastar dinheiro. Para a equipa portuguesa, o soro era positivo fraco. Mas era tarde: a cultura já tinha sido iniciada e seguiu o procedimento habitual. Quando correu para o telefone, a investigadora estava eufórica: tinha conseguido, através daquele sangue, o primeiro isolamento. Ligou para o Hospital Egas Moniz, onde a atendeu Jaime Nina, o primeiro a saber da notícia em Portugal. Em homenagem ao paciente, chamaram ao vírus «MIR».

Em Setembro de 1985, foi decidida a isolar o primeiro vírus LAV na população portuguesa. Naquele dia, Kamal Mansinho fez a colheita e levou-as ao aeroporto de Lisboa, a tempo de a investigadora apanhar o voo para Paris. Maria Odette Santos Ferreira, a nível laboratorial, e José Luís Champalimaud, a nível clínico, tinham experiência suficiente para fundamentar a sua persistência. Quem trabalhava com eles fazia de tudo, de estafetas a clínicos, sem pruridos. A amostra passou no controlo antes do embarque debaixo do casaco de peles, junto ao corpo, de forma a manter a temperatura de 37º C. À chegada, era posto em cultura. «Hoje seria bioterrorismo”.

Catalogada como «uma doença de comportamentos», restrita a homossexuais e toxicodependentes, era um assunto tabu aos olhos da sociedade. A ignorância estimulou o medo, que se propagou como uma pandemia. «Lembro-me que havia quem mudasse de passeio só para não se cruzar comigo. Na faculdade, o diretor não queria que eu trabalhasse, com medo que eu infetasse alguém. As pessoas achavam que se transmitia com um aperto de mão». Era preciso educar a população. Portugal soubera da doença através dos noticiários: António Variações era seropositivo. Passou a haver um rosto; já não era apenas uma sigla. Foi o primeiro de muitos.

Criação do Laboratório de Biologia Molecular
No mesmo ano (1986], recebeu o grau de Professora Catedrática e estava à frente do Conselho Directivo. Depois de arrumar os currículos, decidiu avançar com a construção de um novo edifício, uma obra adiada havia 50 anos. Foi ao Ministério da Educação pedir contas e responsabilidades pelo atraso. A CEE tinha meios de financiamento, e resolveu concorrer para construir o centro de investigação, mas sabia que, se unisse esforços, a probabilidade de conseguir o apoio era maior. Juntaram-se farmácia, medicina e medicina molecular e, à falta de consenso quanto à gestão, ficou a reitoria responsável pelos três centros de investigação. Assim, foi-lhe possível avançar com a criação do Laboratório de Biologia Molecular e do Centro de Patogénese Molecular, devidamente equipados.

Arranque do programa de troca de seringas
E, com a mesma determinação com que entrava no gabinete do ministro, passou a ir ao Casal Ventoso, em Alcântara – bairro problemático à porta da capital e hipermercado de droga do país – sensibilizar os toxicodependentes para os riscos de infeção. Por isso, quando, em 1993, propôs o projeto de troca de seringas Diz Não a Uma Seringa em Segunda Mão, sabia que estava a atacar o problema pela raiz.

Traçou um mapa de acção: 2500 farmácias e 200 mil kits, que continham um preservativo, um toalhete desinfectante e uma seringa esterilizada, entregue em troca de uma usada. À Comissão de Luta Contra a SIDA juntou-se, no protocolo homologado pelo Ministério da Saúde, a ANF [Associação Nacional de Farmácias] e o Alto Comissariado do Programa Nacional de Prevenção da Toxicodependência Projecto Vida.

Em 1995, um estudo do Centro das Taipas – centro multidisciplinar com funções na área das dependências patológicas – dava conta de uma diminuição acentuada do número de novos casos de seropositividade, apontando o programa como responsável pelos resultados. Cinco anos depois, eram recolhidas 7000 seringas por dia. De acordo com dados da ANF, entre 1993 e Dezembro de 2008 tinham sido recolhidos mais de 43 milhões de seringas.

Actualmente, Odette Ferreira continua a ir a congressos, palestras e vai todos os dias à faculdade
[Hoje], continua a gerir projetos de investigação. A agenda está sempre preenchida. Faz por isso. Não se jubilou, nunca quis dar a última lição. «Que sentido faz quando a pessoa tem mais experiência ir para casa? Sou voluntária, não prejudico ninguém; pelo contrário, ajudo muita gente e considero-me uma trabalhadora», diz. Desde que ouviu Rita Levi Montalcini, Prémio Nobel da Medicina, defender que as células não têm idade, mantém-se ainda mais ativa. Acredita que, assim, será sempre muito mais nova do que é na verdade.

 A biografia foi escrita ao abrigo do acordo ortográfico.

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