Comandos: “Nós, instrutores, temos de mostrar indiferença”

Dos cinco acusados que vão prestar declarações nesta fase inicial do julgamento pelas mortes de dois recrutas só um foi ouvido nesta quinta-feira. 19 militares estão a ser julgados.

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Mário Cruz/Lusa

No segundo dia do julgamento dos Comandos do curso 127, as dúvidas sobre a água permitida e efectivamente consumida pelos recrutas durante a chamada Prova Zero foram parcialmente dissipadas. As mortes, em Setembro de 2016, dos instruendos Hugo Abreu e Dylan da Silva — que resultaram da falência orgânica provocada por uma desidratação extrema — deram origem a uma acusação por 539 crimes, uma vez que a cada arguido são imputados vários.

Ouvido a seu pedido, nesta quinta-feira, o 2.º sargento José Silva, que desempenhava função de instrutor, disse que ficou decidido numa reunião realizada antes do curso começar que, embora a determinação do Guião da Prova Zero indicasse como limite os três litros de água por dia, para cada recruta, os instrutores poderiam permitir um consumo de até aos cinco litros. Esta informação é relevante na medida em que alguns dos principais acusados remetem para o guião da prova e para as suas limitações quando defendem que apenas cumpriam ordens.

“Na reunião na EPQ (Escola Preparatória de Quadros) falámos que íamos aumentar” o limite, afirmou José Silva em resposta a uma pergunta da juíza que preside ao colectivo, Helena Pinto. “Face ao guião [entregue nessa reunião], cada instruendo tinha três cantis, e se os instrutores decidissem que fosse mais, seria mais”, relatou.

Questionado, esclareceu que nesta reunião na EPQ estavam presentes todos os instrutores do curso, nesta quinta-feira sentados no banco dos réus, o director e o responsável da formação, também a serem julgados. Treze vestiam a farda de Comando, um trazia a farda do Exército e outros cinco, entre os quais o médico e o enfermeiro, vinham trajados à civil — o que suscitou a manifestação de forte desagrado por parte do juiz militar deste colectivo, o coronel Jorge Ferreira.

Na semana passada, a primeira sessão do julgamento foi suspensa. O Ministério Público requereu que a parte civil do pedido de indemnizações aos familiares das duas vítimas fosse analisada nos tribunais administrativos e não no Tribunal Central Criminal onde os 19 militares estão a ser julgados por crimes de abuso de autoridade e ofensa à integridade física, previstos no Código de Justiça Militar.

Os advogados de defesa aceitaram e o julgamento pôde prosseguir, mas um pedido de recurso desta decisão vai dar entrada no Tribunal da Relação. Os advogados das famílias das vítimas, Ricardo Sá Fernandes e Miguel Santos Pereira, querem ver os pedidos de indemnização, num total de cerca de 700 mil euros, serem analisados neste julgamento. Enquanto não for conhecida a decisão da Relação, este prossegue, com a próxima audiência marcada para 10 de Outubro.

Além de José Silva, também vão prestar declarações o médico-capitão Miguel Onofre Domingues, o capitão Rui Passos Monteiro (responsável da formação) e dois instrutores sargentos, Lenate Inácio e Messias de Carvalho.

199 testemunhas

A acusação chamou 199 testemunhas, entre militares, peritos, médicos e dezenas de instruendos do curso fatal, que sofreram ou não lesões nesta mesma Prova Zero que resultou na morte de Abreu e Dylan da Silva (ambos com 20 anos). Já foram ouvidos na fase de inquérito, e descreveram, então, em pormenor, o que dizem ser os castigos, a humilhação, a violência e as ofensas corporais a que terão sido sujeitos no primeiro dia da instrução, mas também no estágio de poucas semanas que antecedeu o início do curso.

Esta prova, que em cursos anteriores já foi designada por Prova de Choque ou Prova da Sede, foi nesse dia 4 de Setembro de 2016, suspensa às 16h a pedido do capitão-médico, que já tinha 23 instruendos a serem assistidos pela equipa sanitária, e por ordem do tenente-coronel Mário Maia.

Tal como na fase de instrução do processo (quando a juíza de instrução criminal determinou que existem indícios suficientes para levar todos os 19 acusados a julgamento), o depoimento desta quinta-feira, do 2.º sargento José Silva, divergiu da versão descrita por instruendos na fase de inquérito. Concluída essa fase, o Ministério Público acusou os instrutores de agirem com dolo, já que, segundo a acusação, teriam consciência da gravidade da situação de alguns instruendos logo no início da prova e nada fizeram para prevenir os riscos.

Às perguntas a juíza Helena Pinto, do procurador José Nisa e dos advogados, José Silva reiterou que não tomou consciência de que alguns instruendos do seu grupo — tal como um chamado José Costa, referido na acusação como um dos primeiros que naquele dia se sentiram mal — tivessem vomitado ou dado sinais de confusão e de estarem desidratados, isto ainda antes da hora do almoço. Por isso, argumentou, se mantiveram na instrução até ao início da tarde quando tiveram de ser retirados para a enfermaria.

“Nós [instrutores] temos de mostrar indiferença”, disse José Silva sobre a razão de fazer sinal à equipa sanitária, quando José Costa já não conseguia prosseguir, em vez de se aproximar.

José Silva negou ter visto — antes desse momento — qualquer um desses instruendos mais debilitados a vomitar, desmaiar, cambalear ou mesmo cair sem se poder levantar. Entre esses, estava Hugo Abreu, que viria a morrer às 21h45.

Só com o avançar das audiências se verá se os advogados de defesa tentarão fragilizar a acusação pelo facto de o major que conduziu a investigação que levou ao julgamento, se encontrar agora em prisão domiciliária. A medida de coacção decretada ao major Vasco Brazão pelo envolvimento na operação encenada pelos responsáveis da Polícia Judiciária Militar para recuperar as armas de Tancos foi conhecida esta semana.

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