Posso recusar a “bonificação” governamental?

Prefiro não ter qualquer reposição do tempo de serviço do que aceitar uma hipócrita esmola dada por governantes em trânsito.

Na passada sexta-feira, dia 28 de Setembro, realizou-se uma ronda de negociação suplementar acerca da recuperação de serviço do tempo docente. Como era de esperar, atendendo ao que já fora dito e repetido, acabou sem acordo ou aproximação de posições, sendo que os representantes do Governo já traziam consigo o projecto de decreto-lei com a imposição da sua proposta inicial. Tamanha pressa faz-me pensar que querem tudo resolvido antes que a Iniciativa Legislativa de Cidadãos sobre este assunto possa sequer ser discutida. Num longo preâmbulo, a proposta perde-se em considerações de políticas que procuram justificar uma solução que visa devolver menos de um terço do tempo que os professores tiveram a sua carreira congelada, sendo que em outras carreiras essa recuperação foi total.

Os termos de tal justificação são atentatórios de qualquer pessoa com um pouco de inteligência e são especialmente ofensivos para os visados. Em primeiro lugar, porque pretende reduzir o período de congelamento aos anos de 2011 a 2017, quando a esse tempo acresce o que decorreu entre o fim de Agosto de 2005 e finais de 2007, como se essa malfeitoria dos tempos do engenheiro Sócrates e da sua ministra favorita não pudesse ser sequer lembrada. Em seguida, porque se apresenta uma solução que de “justiça e equidade” nada tem como se fosse um acto de excepcional generosidade. A certa altura, após um esforço demorado para explicar o que é da lei como se fosse algum privilégio – a carreira docente tem um estatuto próprio, distinto de outras carreiras –, pode ler-se que “não se pode, no entanto, deixar de relevar o carácter claramente excepcional da solução agora apresentada, que atendeu ao facto da carreira docente ser uma carreira com uma única categoria, o que se traduz num desenvolvimento unicamente horizontal (...)”.

Pessoalmente, prescindo de tamanha excepcionalidade e considero mesmo que, pela parte que me toca, podem guardar a generosidade que os leva a, quase colocando em risco a “sustentabilidade” das finanças públicas, devolver-me 2 anos, 9 meses e 18 dias dos 9 anos, 4 meses e 2 dias que querem apagar da minha carreira profissional.

Sendo que tal recuperação, como está formulada, se torna irrelevante para os docentes que estão no 9.º e 10.º escalões, pode ter um efeito nulo em quem esteja em escalões submetidos a quotas de progressão como o 4.º e o 6.º e só se reflectirá nos restantes escalões (salvo o 5.º) em 2022 ou 2023.

Mais grave, a excepcional solução apresentada foi de tal forma excepcionalmente pensada que promove ultrapassagens injustas e iníquas na carreira. Ao prever no seu artigo 1.º que o tempo a recuperar se repercutirá apenas no escalão para o qual os docentes progridam a partir de 1 de Janeiro de 2019, permite que quem tenha progredido durante 2018 para um dado escalão venha a ser ultrapassado por quem progrida para esse mesmo escalão apenas em 2019.

Exemplificando: quem tenha ascendido ao, por exemplo, 3.º escalão (ou 2.º, 4.º, 6.º, 7.º, 8.º) em Junho de 2018, só voltará a progredir em Junho de 2022 para o 4.º escalão, pelo que só então poderá beneficiar da “bonificação” ministerial, encurtando a sua permanência nesse escalão. Mas quem vier a ascender a esse mesmo 3.º escalão em Março de 2019 poderá imediatamente beneficiar de tal bonificação e ascender ao 4.º escalão em Junho de 2021. O que significa que alguém que estava atrás nove meses na carreira passe a ficar, durante algum tempo, um ano à frente, com os consequentes ganhos salariais.

Que uma solução deste tipo, que cria uma situação de desigualdade e ultrapassagem sem qualquer sentido e muito duvidosa constitucionalidade no seio de uma carreira já de si discriminada em relação às que têm todo o seu tempo de serviço recuperado, seja proposta por um governo que se afirma defensor da tal “justiça e equidade” e seja apresentada por alguém, como a secretária de Estado Alexandra Leitão, com um currículo onde avultam um doutoramento em Ciências Jurídico-Políticas e a docência de uma disciplina como Direito Constitucional, torna tudo profundamente ridículo.

Perante isso, a única atitude coerente com quem não queira pactuar com este abuso de poder e com a inaceitável retórica da “generosidade” de uma “bonificação” é a busca dos procedimentos legais para recusar a aplicação desta medida, nem que seja em termos individuais. Pessoalmente, sublinho, prefiro não ter qualquer reposição do tempo de serviço que me foi sonegado do que aceitar uma medida em forma de hipócrita esmola dada por governantes em trânsito.

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