O Rio tem medo e vai votar Bolsonaro

Na cidade baixa, as pessoas estão fartas de violência e crime, acusam os favelados e esperam que Bolsonaro os salve. Nas favelas, também não aguentam mais a violência, mas contam outra história. E alguns vão votar também na extrema-direita.

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Favela Santa Marta,Favela Santa Marta Sérgio Moraes/Reuters,Sérgio Moraes/Reuters

Nem foi preciso meter conversa para saber em quem o taxista do Rio de Janeiro vai votar nas eleições presidenciais brasileiras, no domingo. Mesmo a conduzir, não conseguiu esperar para ver no telemóvel, sobre o volante, um vídeo de um dos muitos visitantes que o candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro recebeu enquanto esteve internado, por ter sido esfaqueado durante uma manifestação de apoio em Juiz de Fora. “É, eu vivi a ditadura, mas vejo-me obrigado a votar na extrema-direita. Essa violência que está aí tem de ser combatida com violência sim. Esses moleques do crime têm de perceber que não podem fazer tudo. Ninguém aguenta mais.”

Francisco, é o nome do taxista, não é caso único no Rio. Indo pela longa Rua dos Voluntários da Pátria fora, no Bairro do Botafogo, na zona sul da cidade, uma área abastada, é difícil acertar em abordar alguém que não diga que vai votar em Bolsonaro. “Vou tentar uma melhoria com o meu voto. Pior é difícil”, diz António Cláudio Gomes, de 51 anos, proprietário do carrinho de venda Pipoca do Cláudio, de onde sai um cheiro delicioso. Tem doces, salgadas e com gosto de bacon. Também tem muitos clientes habituais, que o cumprimentam, perguntam pela família.

Mulato, redondinho, sorridente, António Cláudio Gomes diz que nunca teve problemas com bandidos e tem o negócio desde 1997. “Mas aqui a gente assiste a muita coisa”, frisa. Votava no Partido dos Trabalhadores. “Não fiquei zangado. Mas estou vendo as coisas e não está dando certo.” Por isso aposta agora em Bolsonaro.

“Houve um tiroteio aqui”

O taxista fica preocupado, quando chegamos ao destino. É na Praça Corumbá, onde fica o ponto de partida para uma visita à favela Santa Marta – a primeira a ter uma unidade de Polícia Pacificadora (UPP), que a partir de 2008 começou a criar polícia comunitária em favelas após intervenções armadas duras para desalojar os narcotraficantes.

“Isto não é conversa para assustar turista, mas ainda ontem houve um tiroteio aqui”, avisou, relutante, em deixar uma estrangeira sozinha para entrar no Santa Marta. Durante anos, as coisas foram correndo bem no bairro, mas as coisas regrediram com o declínio do projecto das UPP, acompanhando a falência do estado do Rio de Janeiro, a prisão por corrupção do próprio governador Sérgio Cabral, que lançou o projecto. Até nesta favela, que ficou famosa, porque Michael Jackson filmou lá parte do vídeo da música They don’t care about us.

“Tiroteio? Não, tivemos uma semana de paz”, diz Salete Martins, uma guia turística local, moradora no Santa Marta desde os oito anos. Salete e o marido fizeram formação como guias turísticos, ao abrigo dos programas sociais que acompanharam as UPP no início. Várias outras famílias no Santa Marta dependem dos visitantes curiosos de ver como se vive nas favelas do Rio. “São quase todos estrangeiros, pelo menos uns 70%”, explica.

Mas há tiroteios no Santa Marta, sim. “No fim-de-semana passado, a polícia proibiu um evento de hip-hop. Eles até obedeceram, mas aí a polícia apareceu e começou a atirar para o ar. Aí as pessoas acharam que era um tiroteio. E depois vieram dar resposta…”, explica Salete, loura, de calças elásticas pretas e T-shirt pólo branca, ténis de pano pretos, ligeira, já a subir a ladeira de entrada no bairro, ladeada de barraquinhas tipo lanchonete e vendas de utilidades, sob um sol que às 10h da manhã já queimava.

Entramos no funicular que nos leva até ao topo da favela: é pequena, apenas com cerca de cinco mil habitantes, mas derrama-se desde o cimo do morro Santa Marta, com se alguém tivesse deixado cair cubos coloridos pela encosta abaixo, entre o arvoredo verde. O “bondinho”, como é conhecido, foi um dos projectos integrados nas UPP. Tem uma pequena cabina apenas refrescada por ventoinhas, e com umas estreitas aberturas por cima das janelas, e um anexo que transporta o lixo, lá de cima até cá abaixo.

Sem respeito

A polícia da UPP de hoje não é como do princípio. “Perderam o respeito do povo”, explica Salete Martins, ao aproximarmo-nos do edifício da unidade do Santa Marta, bem no topo, após a quarta paragem do bondinho. Vê-se a baía ao fundo, o Corcovado, a paisagem linda de morrer do Rio de Janeiro… E as construções da favela lá mais em cima, mais toscas, algumas em tijolo apenas, ou em betão sem tinta, algumas ainda de madeira, com ar maltratado, mas onde vive gente. Há roupa pendurada a secar.

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“Os dois primeiros comandantes tinham respeito pela população, iam de casa em casa, diziam-nos que estavam aqui para proteger. Andavam desarmados, só com uma arma de choque. Agora não querem saber da população, não nos respeitam”, diz a guia.

Foi quando chegaram estes novos comandantes de que ninguém gosta que regressaram os traficantes, explica, quando começámos a descer as escadas de cimento, com milhares de degraus, de tamanhos diferentes, que nos levam do topo até à ladeira de entrada da favela. Têm tamanhos diferentes, fazem curvas, passam em vielas estreitas, outras mais largas – descê-los todos faz dor na barriga das pernas.

Ouve-se música, vinda de vários lados. “Eu só quero é ser feliz na favela onde nasci/andar tranquilamente na favela onde eu nasci”, jorra de um rádio.

O factor Eike

Ao lado das escadas corre esgoto a céu aberto. “Houve a urbanização das favelas, mas tudo parou, a partir de 2013”, diz Salete Martins. É que em 2013, um dos principais financiadores do programa das UPP, o empresário Eike Batista, rescindiu os protocolos que tinha assinado com a Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro.

A petrolífera do seu grupo, o EBX, tinha perdido 80% do valor, e outros grandes investimentos do empresário, que era unha com carne com o governador Sérgio Cabral, começaram a correr muito mal. Entretanto, foi condenado em Julho a 30 anos no âmbito da investigação Lava-Jato. E o governador Cabral está preso e condenado a mais de 40 anos de prisão por vários crimes de corrupção, entre os quais no Programa de Urbanização de Assentamentos Precários, ou PAC Favelas, como era conhecido.

A partir daí, o dinheiro foi-se acabando. Os cursos de formação, os investimentos de outras empresas terminaram. “O programa de turismo durou três anos e acabou por falta de verba. Hoje são os moradores que continuam sozinhos, a tentar sobreviver”, explica Salete Martins. Há 12 guias credenciados no Santa Marta, como ela.

#Eu morro de medo

“Hoje no Santa Marta existe repressão e opressão. O processo de pacificação retrocedeu em todas as favelas. Por causa da crise, porque falta pagamento, falta administração”, afirmou José Mário Hilário dos Santos, o presidente da Associação de Moradores do Santa Marta, que estava na Praça Corumbá, a tentar chamar um Uber. O primeiro carro designado desistiu. “Os carros de aplicação vêm até à praça, mas não sobem. Têm medo”, explica Salete Martins.

Mas os moradores da favela também sentem medo. Estavam a preparar um protesto, ali na Praça Corumbá, para o dia seguinte, com hashtags nas redes sociais #eu morro de medo e #já aconteceu comigo. “Quando os policiais chegam na sua casa e já vão invadindo”, explicam. Só que o apelo, lançado no Facebook, tem muito poucos aderentes. “O problema é que pouca gente tem Internet. Em 2010, o governo [estadual] deu-nos wi-fi grátis mas depois tiraram”, explica Andrea Martins, que tem uma loja de souvenirs na placa onde há uma estátua de bronze de Michael Jackson.

“Poucos políticos vieram aqui fazer campanha. Antes vinham muito”, lamenta Salete Martins. “O que eu não suporto é ver favelado a dizer que vai votar Bolsonaro. Tem muito aí”, diz Andrea Martins.

Lá em baixo, na cidade do asfalto, também se morre de medo, e de desconfiança das favelas. Josilene Mota de Lima, de 46 anos, vende T-shirts de Jair Bolsonaro na rua a 30 reais (menos de sete euros) e vai votar nele. “Ele defende a família e quer mudar a lei para punir os menores. Eles matam, roubam e o máximo que pegam é três anos. Se têm idade para matar, são responsáveis pelos seus actos”, defende a vendedora, cabelo preto preso num rabo-de-cavalo, lábios vermelhos de bâton.

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Um cliente pára para comprar uma T-shirt. “Tem para homem?”

Marcelo Puntar, de 37 anos, trabalha num cartório ali perto, não pode demorar. Tem barba, olhos vivos, T-shirt azul. “É o homem que vai tirar o país da lama. Bolsonaro quer defender os direitos humanos da população em geral, mas não dos bandidos”, diz.

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