Masego tem sexo na ponta do “sax”

O filho de pai pastor que cresceu na igreja rodeado de ave-marias e coros gospel é, hoje, um jovem-velho-gentleman que, de saxofone na mão, faz religiosamente a corte a todas a mulher bonita que passa, mais velha ou mais nova, rosa-choque ou às pintinhas. Também é um inovador e superdotado músico de quem Lady, Lady, o primeiro LP, é só o primeiro tijolo de uma obra que se advinha imensa - vamos poder testemunhá-lo já em Novembro no Super Bock Em Stock.

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Fkj & Masego – Tadow”. Podia ser uma designação como qualquer outra, uma entre tantas para uma canção algures disponível no YouTube. Mas não é – antes, o nome de um autêntico fenómeno popular na era da música em streaming, caso raro de uma canção recente (obviamente que uma canção com barbas dos Beatles ou dos U2 se encontra noutro campeonato “estatístico”) que, contando milhões de visualizações (quase 52, por esta altura), faz corresponder aos redondíssimos números um genuíno e magnetizante virtuosismo dos intérpretes.

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Masego e o seu saxofone (fabricado na África do Sul, onde tem raízes familiares), a que deu o nome de Sasha

Fenómeno que, ainda o ouvinte não se apercebeu, e já lhe está a injectar substâncias adictivas na corrente sanguínea. Mas não só o som, também a imagem: o que se vê nesse único plano-sequência de oito minutos de uma sessão totalmente improvisada entre o francês F.K.J. (colaborador determinante em Lady, Lady) e o americano Masego, nascido há 25 anos em Kingston e criado na Virgínia por pai jamaicano e mãe americana, é uma jam no sentido quase mítico do termo, uma daquelas em que imaginamos um Hendrix e um Miles Davis numa noitada em caseirinho e ébrio estúdio.

Descontracção, charme, boa disposição – e, claro, talento, carradas dele –, tudo em bruto. Dois artistas em estado de graça a “brincarem à música”, puxando deste e daquele instrumento, experimentando esta nota e outra mais ali, como se, acaso alguém lhe entrasse pelo estúdio adentro e lhes sugerisse a introdução de um címbalo húngaro, eles retorquissem: “Porque não? Deixa cá ver”. Sem pressas, como se de apenas mais uma tarde de recreação entre dois miúdos acabados de sair de um dia de aulas se tratasse. F.K.J. ocupando-se das teclas, baixo, guitarra, Masego, sempre de óculos escuros, começando a fazer percussão com o dedilhar de nada mais nada menos do que o seu passaporte, passando para uma drum machine e um sampler, depois a bateria e finalmente, claro, o seu superpoder: o saxofone (a que junta, ele que não sabe ler música, o domínio de uma panóplia de outros brinquedos, entre piano, violino, guitarra, todos aprendidos autodidacticamente).

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Durante grande parte da sua vida, o jazz é que foi a sua “cena” (cita Cab Calloway, nome maior das big bands dos anos 30, como herói), só nos últimos anos se interessando mais a fundo pelo hip-hop

Mas não um saxofone qualquer: um fabricado na África do Sul, onde tem raízes familiares (“Masego” significa “Abençoado” em tswana, língua falada no Botswana e no país de Mandela, nome que o músico adoptou pelo facto de, na igreja, o apelidarem de “Little Blessing” pela forma rápida e intuitiva como aprendia a tocar novos instrumentos), a que deu o nome de Sasha e do qual traz sempre uma miniatura ao pescoço, tendo-lhe mesmo criado uma conta no Twitter, personalidade “virtual” que tem correspondência na personalidade ou preponderância central do “sax” no seu som.

Na verdade, ainda Masego não tinha música editada e já fazia furor por essa Internet fora (Woman Crush Wednesday era o nome da sua rubrica no SoundCloud) solando com a sua fiel companheira por cima de instrumentais populares de terceiros. E um saxofone, ainda, cuja maior particularidade está no facto de a motivação para o aprender ter vindo da mesma fonte que agora motiva Masego a fazer música: caidinho por uma jovem professora que, no liceu, veio temporariamente substituir a titular e trazia uma fotografia de Najee Davis na capa do dossier, o ainda adolescente decidiu que não era tarde nem cedo, por ali tinha de trilhar a sua conquista (por ali e pelas aulas de natação em que se inscreveu, para abrir os pulmões que o instrumento exige).

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“A minha inspiração são as mulheres”, não se cansa de afirmar uma e outra vez. Se, nessa jam com F.K.J., as mãos vão percorrendo diferentes instrumentos, à voz não é dado maior descanso pelo meio de diversas harmonias, inflexões, ritmos, cadências: Masego canta tão maravilhosamente como rappa, embora seja, acima de tudo, um cantor (mas um que, em 2018, solta um “yo!” antes de iniciar um prodigioso falsete, por exemplo), com um aspecto curioso (ou estranho): embora conte 25 Verões, parece, por vezes, que a sua voz ainda se está a formar.

TrapHouseJazz? Tudo isto e ainda mais

Ainda este ano, o rapper norte-americano Freddie Gibbs causou sensação com a capa do seu novo disco (Freddie), recriação fiel, mas com o seu rosto, da cover do célebre Teddy, LP de 1979 do grandíssimo nome da soul americana Teddy Pendergrass. Tirando a graça do gesto, tiro ao lado: a música de Gibbs está tão próxima da de Pendergrass como a Terra de Plutão, não pelo facto de o primeiro fazer hip-hop, mas porque o seu hip-hop em particular, interessado nos contos violentos de drogas e ruas, em nada contacta com a sensualidade e o charme canastrão do som e das palavras do homem de Close The Door ou Turn Off The Lights. Isto para dizer que, se há rosto que, num esforço de reactualização, poderíamos substituir na artwork desse álbum de Pendergrass (ou na de um de Barry White ou Luther Vandross), ele é, justamente, o de Masego, jovem cavaleiro andante sempre a apalpar, cheio de souplesse, os terrenos do amor, do sexo, do engate cortês. Uma forma de estar também na vida real eventualmente problemática nos inflamados (quando não neopuritanos) dias que correm?

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Em entrevista à publicação Okayplayer, Masego, que se encontra em digressão pela Europa e visitará Lisboa em Novembro para a próxima edição do Super Bock Em Stock (antigo Vodafone Mexefest), mostra como é um tipo com a cabeça no sítio certo: “Vivemos num tempo em que todos podem ser acusados de assédio sexual. Eu interajo com mulheres que se sentem atraídas por mim, que entram na minha esfera. Se uma mulher deseja a minha atenção e permite que eu reaja de volta, então temos uma boa cena. É tudo!”

Eis o ultra-romântico imaginário masegoniano: tons (sons) luxuriantes, faustosos, enfim, diríamos, “roxos” (como os das magníficas fotografias que acompanham Lady, Lady). Com a diferença de que, onde o outro pequeno-grande-senhor via rain, o nosso Masego, que também é um cartoonesco entertainer em palco (disse à Billboard que ver os espectáculos de Jamie Foxx, em que a stand-up comedy convivia com grandes performances ao piano, foi muito inspirador), vê sol limpo: “Purple sun”, então, se nos é permitido o canhestro trocadilho, pois que, aqui, a melancolia fica (quase) sempre à porta, a diversão e o sorriso de orelha a orelha são quem mais ordenam. Dizendo-se um admirador do trabalho “punk” de Vivienne Westwood (por também ele gostar de cruzar a alta costura com as peças mais hood possíveis), compreende-se o interesse da Vogue na entrevista que lhe fez recentemente: a sua vistosa aparência tem correspondência na riqueza e excentricidade do seu som.

TrapHouseJazz: foi esta a arrojada fórmula que o próprio Masego elegeu (fugindo àquele irritante cliché de tantos músicos que invariavelmente se queixam do quão “opressores” são os “rótulos”) aquando do lançamento do seu primeiro EP, Pink Polo EP (2016, em colaboração com Medasin), celebrado com o mesmo fervor por público e crítica. E que constitui, de facto, boa súmula de como o jazz clássico (mas, também, as suas derivações mais acid) em que Masego se educou (também há scatting no EP, recurso vocal jazzístico por excelência) se funde com as tonalidades próximas do hip-hop, da música bass e das amplíssimas possibilidades da electrónica (e o mais arrebatador, nesse EP, estava na forma com as “componentes” da fórmula se desconstruíam e transformavam permanentemente no interior da mesma canção).

Durante grande parte da sua vida, o jazz é que foi a sua “cena” (cita Cab Calloway, nome maior das big bands dos anos 30, como um dos seus heróis), só nos últimos anos se passando a interessar mais a fundo pela história do hip-hop – e que bom é ouvi-lo, na letra de Throwin’ Shade, a trautear como está farto das rivalidades e bisbilhotices do rap americano, as mesmas que, hoje, ocupando as manchetes de publicações outrora sérias (New Musical Express, Pitchfork), as fazem descer a níveis inimagináveis (“Nicki Minaj insulta Cardi B de…”, “O que acham da afronta de Pusha T a Drake?”, “Cardi B atira sapatos a Minaj”). Onde a música, hélas, é o que menos interessa e mero pretexto para o mais pornográfico clickbait.

Nesse e no EP seguinte, Loose Thoughts (2016), encontrávamos Masego a experimentar e a tactear harmonias e texturas, ritmos e balanços, sem grandes preocupações com a coerência final, mas ostentando já uma inusitada classe e segurança. E, sobretudo, dois trabalhos onde o “sax” – alto e tenor – assumia um papel bem mais preponderante (e exuberante) na composição do que agora encontramos em Lady, Lady (no qual só especialmente sobressai em Queen Tings, inacreditável pedaço de groove tropical, e na jazzística Black Love, que partilha semelhanças harmónicas com a Room in Here de Anderson .Paak), aspecto curioso quando o “sax” é o seu sexy cartão-de-visita, desde logo por se mostrar incomum (até, digamos, “excêntrico”) na fauna do hip-hop (assim de repente, só nos lembramos do brilhante Soweto Kinch, rapper inglês que há uns anos deu um memorável concerto na Casa da Música, no Porto, de saxofone-alto nas mãos).

No princípio e no fim, ladys

Por esta razão, os dois primeiros EP mostravam-se, de um certo ângulo, mais frescos, inventivos ou surpreendentes (Girls That Dance ou Shut Up & Groove são impressionantes canções, “futuristas” até, em que o funk, a soul e a bass music casam no maior dos estilos) do que Lady, Lady, belo, mas mais ponderado ou convencional disco, como se Masego pretendesse selar uma certa maturidade. “Matter of fact / It's that Pink Polo / The innovative / It's experimental / Fresh and creative”, reconhecia Masego em Throwin’ Shade, por contraposição ao que afirmou, recentemente, à Billboard: “Este álbum é uma passagem à maioridade. Os projectos anteriores tinham uma energia diferente, agora sinto que alcancei uma versão mais amadurecida de mim mesmo. Até eu próprio já tenho quase a barba completa, o meu corpo de homem está a acabar de se formar!”.

Se acima falámos das diversas texturas que marcam o seu som, é com uma muita apropriada, literalmente falando, que se inicia o disco: Silk abre unicamente ao som de um piano corny q.b., deixando, já no fim, inundar-se pelos coros-falsetes que se prolongarão em I Had a Vision, uma de um “Room full of women/ All of them were driven/ Straight independent”. “Bring the chorus!”, exalta Masego, os quais marcarão o disco de uma ponta à outra, rememorando o gospel da igreja da infância onde a mãe era a responsável por toda a secção musical. O “sax” só aparecerá, discretamente, à terceira faixa, Lavish Lullaby (“luxuriosa canção de embalar”, em bom português, mas uma, já se percebeu, para outro tipo de embalos), único registo do álbum que, de facto, se aproxima do trap (o house, por sua vez, parece posto de parte). 

Se o tivéssemos de definir em termos breves, diríamos que Lady, Lady é um grande disco soul dos nossos tempos, que, como tal, não dispensa o swing do melhor hip-hop. O de, por exemplo, Andre 3000 (metade dos saudosos OutKast), de quem Where Are My Panties? (do LP Speakerboxxx/The Love Below, 2003) é homenageada em 24 hr. Relationship, e isso ainda antes mesmo de sabermos que Masego cita o primeiro como uma das suas influências (“That 3k with Andre”, dizia ele em Throwin' Shade, já depois de evocar, não sem dissabor, o seu também ídolo Kanye West: “That old K, pre Kim K, that through the wire”). Em ambas as canções, os monólogos interiores, dulcíssimos, de um homem e de uma mulher que mal se conhecem (a actriz Rosario Dawson e Andre 3000 com os passarinhos em fundo, aqui a cantora Kehlani e Masego acobertados pelas teclas e um fraseado de baixo) deitados numa cama madrugadora depois de uma one night stand (“I ain't even know my body could do all that”, espanta-se ela…). Ou talvez não, talvez algo mais possa vir dali, talvez, mesmo, o motivo do título do disco: “I'm just thinking like, what if she's lady lady/ Like what if this woman is lady lady/ What's gonna happen next?” (Andre 3000 terminava interrogando-se “But what if she's the / What if she, what if she, what if she's the one?”…).

Este tipo de remissões tem prolongamento numa canção como Old Age, na qual, quando lhe ouvimos “Age ain’t nothing but a number”, sabemos que é ao primeiro álbum da malograda Aaliyah que Masego se refere, embora em termos curiosamente distintos: onde a nova-iorquina, com apenas 15 anos à data do lançamento, se referia ao facto de a idade não ser carimbo para atestar o seu talento (mas quiçá, também, numa leitura retrospectiva, para namorar com um homem muito mais velho, hoje abundantemente acusado de abusos sexuais, como R. Kelly, produtor do disco), Masego fala da naturalidade com que o miúdo se pode apaixonar por uma mulher (muito) mais velha. “Tem que ver com o nível de vulnerabilidade emocional”, diz Masego, que cresceu com duas irmãs em casa, à Billboard. “Sou jamaicano, pelo que venho de um meio de cinto e chicote. Ser sensível não é algo que faça propriamente parte da minha cultura! Mas quando estou com uma mulher, ela é capaz de me falar de como um pedaço de arte a tocou ou, simplesmente, daquilo que sente em geral”.

Old Age é uma das poucas malhas onde Masego recruta uma voz adicional, e logo a de SiR[UdW1], invertendo, cheio de humor, o estereótipo do homem mais velho que se apaixona por uma miúda mais nova; mas, repare-se, não é de uma simples MILF (acrónimo popular para Mother I’d Like to Fuck) que se fala, antes de uma “Old lady/ Foxy mama/ Sophisticated” a quem o tempo conferiu singulares qualidades apreciadas por um millennial (“Young gal, she don't get my jokes, or my references, Old lady/ She ain’t with the tech or the messages”, ou, como agradece SiR, “Ain’t worried bout my time/ Might even deny my stayin’ overnight”).

E, por falar em millennials, repare-se no criativo modo como Masego se serve do som da vibração de um telemóvel como instrumento de percussão em Prone, metáfora – aqui sem veneno, só swing – para toda uma geração que vive ao ritmo de “likes” e “redes sociais”. Ou como resgata, na instrumental Sugar Walls, o beatbox, instrumento vocal-percussivo caído em desuso (mesmo dentro do hip-hop), novamente audível em Just a Little (cujas teclas ressoam as do inesquecível single I Know What You Want de Busta Rhymes e Mariah Carey), onde o “ritmo” da condução do carro a que alude a letra é a um só tempo sexual e afectivo (“I don't even love you/ Maybe just a little/ I don't even know you/ I feel your rhythm, your rhythm”).

Em 2018, Lady, Lady, cujo único defeito é mesmo não ser mais longo, revela-se uma excelente peça de um dos mais promissores músicos norte-americanos dos nossos tempos, devendo “promissor” ser aqui entendido não num sentido de “projecto de”, de embrião (Masego tem provas mais do que dadas, embora nos pareça que a sua voz possa ir ainda mais longe), mas, na realidade, num bem mais ambicioso: em síntese, e ou muito nos enganamos ou, no futuro, por ele passarão alguns dos mais importantes objectos da música popular americana.

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