Da democracia na Europa

A UE reencontrará o seu crédito apenas na medida em que se afirmar como uma Europa da cooperação mais do que de competição.

(Este artigo, publicado simultaneamente nalguns dos principais órgãos da imprensa europeia Le Monde, Frankfurter Allgemeine Zeitung, El Pais, PÚBLICO, Le Soir, L'Espresso, La Repubblica Rzeczypospolita, Kathimerini e outros –, resultou do Colóquio “Revisiter les solidarités en Europe”, realizado no Collège de France em 18 e 19 de Junho no âmbito da  “Chaire État social et mondialisation: analyse  juridiaue des solidarités”, de que é titular o Professor Alain Supiot, bem como da reunião restrita realizada no dia seguinte na Fundação Hugot do Collège de France. A versão integral dos debates do Colóquio pode ser visionada em: https://www.college-de-france.fr/site/alain-supiot/_audiovideos.htm)

A “construção” europeia está ainda a tempo de escapar à desintegração? Desde o malogro do projeto de Tratado Constitucional em 2005, abrem-se fissuras cada vez mais inquietantes, sem que nada pareça poder tirar os líderes europeus do seu sono dogmático. Nem os revezes eleitorais repetidos, nem a fractura económica entre países da zona euro, nem o refinanciamento de banqueiros irresponsáveis à custa dos contribuintes, nem a descida da Grécia aos infernos, nem a incapacidade encontrar uma resposta comum aos fluxos migratórios, nem o "Brexit", nem a impotência face aos diktats americanos impostos a despeito dos tratados assinados, nem o aumento da pobreza, das desigualdades, dos nacionalismos e da xenofobia, permitiram iniciar à escala da União Europeia um debate democrático sobre a crise profunda que esta atravessa e sobre os meios de a superar.

É certo que, na ausência de espaço público europeu, a questão das políticas da União pode ser debatida apenas a nível dos Estados-Membros. Ora, não sendo este nível nacional aquele onde são definidas essas políticas, os debates nacionais resumem-se à questão de saber se devemos “suportar” a Europa da forma como ela disfunciona ou pura e simplesmente sair. Albert Hirschman mostrou num livro famoso que se abrem três possibilidades aos membros de uma instituição em crise ou em declínio: a tomada de palavra dos que a criticam para a reformar (voice), a defecção dos que a deixam (exit) ou a fidelidade, ainda que insatisfeita, dos que hesitam em abandoná-la ou criticá-la (loyalty) [1]. Encontrando-se os verdadeiros órgãos dirigentes da União Europeia (a Comissão, o Tribunal de Justiça, o Conselho e o Banco Central) fora de alcance dos eleitores, os cidadãos europeus têm o sentimento de serem privados de voice e de não terem, portanto, outra escolha que não seja entre a fidelidade e o apelo ao abandono (exit). Os “debates” nacionais sobre a União Europeia reduzem-se assim de maneira caricatural a um torneio entre “pro” e “anti” Europa. Sendo qualificados de antieuropeus todos os que criticam o funcionamento da UE, o número destes não cessa de engrossar e com eles o dos partidos ou governos que adoptam relativamente a ela um ponto de vista etnonacionalista.

Consideramos esta lógica binária enganadora e suicida. É falso que não haja outra alternativa que não seja a de apoiar cegamente as instituições europeias ou de as rejeitar inteiramente. Ao excluir qualquer possibilidade de reformar democraticamente a União Europeia, este falso dilema entre “Eurólatras” e “Euroniilistas” apenas pode conduzir à sua lenta decomposição. Ora, sem mesmo termos de invocar o regresso das tensões e violências identitárias que acompanhariam inevitavelmente tal decomposição, a necessidade de solidariedades europeias impõe-se para fazer face às interdependências dos Estados em domínios como a ecologia, as migrações, as novas tecnologias ou os equilíbrios geopolíticos no mundo. O nosso propósito não é o “de peritos” que pretendem dar lições aos povos ou aos seus líderes. É o de pensadores com opiniões políticas diversas que, analisando o funcionamento da União Europeia a partir de diferentes Estados-Membros, partilham um mesmo diagnóstico alarmante.

A principal razão para o afastamento crescente dos cidadãos relativamente à União Europeia é o divórcio entre os valores em que esta assenta e as políticas que conduz. Estes valores são os proclamados pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, segundo a qual “a União baseia-se nos valores indivisíveis e universais da dignidade do ser humano, da liberdade, da igualdade e da solidariedade; assenta nos princípios da democracia e do Estado de direito”. Esta traição diz respeito, antes de mais, ao princípio de democracia, mas é também evidente relativamente ao princípio de solidariedade.

O perigo que a construção europeia poderia representar para a democracia fora já denunciado a partir de 1957 por Pierre Mendès-France, segundo o qual “a abdicação de uma democracia pode assumir duas formas: o recurso a uma ditadura interna pela entrega de todos os poderes a um homem providencial ou a delegação destes poderes a uma autoridade externa, a qual exercerá de facto o poder político em nome da técnica. Em nome de uma economia sã torna-se fácil ditar uma determinada política monetária, orçamental, social, enfim, “uma política “, no sentido mais amplo da palavra, nacional e internacional” [2]. Os factos deram-lhe infelizmente razão. Em 2009, na sua decisão relativa ao Tratado de Lisboa, o Tribunal Constitucional alemão denunciou por sua vez em termos límpidos o défice democrático da UE. A democracia, recordou, é um regime no qual “o povo pode designar o governo e o poder legislativo por sufrágio livre e igual. Este núcleo duro pode ser completado pela possibilidade de referendos sobre questões de fundo (…). Em democracia, a decisão do povo está no centro da formação e da afirmação do poder político: qualquer governo democrático conhece o temor de perder o poder no caso de não ser reeleito”. Não existe nada parecido na União, que não tem eleições que permitam a uma oposição estruturar-se e aceder ao poder com base num programa de governo. Num livro recente – intitulado A Europa, sim, mas que Europa? – um antigo membro deste Tribunal Constitucional, o eminente jurista Dieter Grimm, atribui este défice de democracia à inscrição nos Tratados de opções de política económica que deveriam normalmente depender da decisão (e da alternância) política [3]. Resulta desta “ hiperconstitucionalização” que, ao arrepio dos valores e princípios que proclama, a União se rege pelo que Jürgen Habermas designou como “um federalismo executivo pós-democrático” [4]. Este regime é, na verdade, o que defendia desde 1939 um dos teóricos do neoliberalismo, Friedrich Hayek, segundo o qual uma Federação de Estados fundada sobre “as forças impessoais do mercado” seria a instituição mais capaz de colocar estas forças ao abrigo “das interferências legislativas”, reduzindo (nomeadamente em matéria monetária, social e fiscal) o poder dos governos democraticamente eleitos nos seus Estados-Membros e dissolvendo qualquer espécie de sentimento de solidariedade, quer seja social, quer seja nacional [5].

De facto, a corrosão dos sistemas de solidariedade, quer se trate dos serviços públicos, do direito do trabalho ou da segurança social, é um dos efeitos mais visíveis “da integração europeia”, e o primeiro factor da sua desintegração. Neste domínio igualmente, a União Europeia traiu os valores que a alicerçam, dado que a proclamação do princípio da solidariedade, estendido à proteção do ambiente, foi o aspecto mais inovador da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia de 1999. Mas, já a partir do fim dos anos 90, diversos autores (J. Weiler, F.Scharpf) tinham posto em evidência a assimetria que estava a ser criada na construção europeia entre, por um lado, a sua capacidade para desmantelar as solidariedades nacionais em nome das liberdades económicas e, por outro lado, a sua incapacidade de edificar solidariedades europeias que assegurassem a esta construção legitimidade política e coesão social [6]. A primazia hoje atribuída na Europa “às forças impessoais do mercado” leva a que se encare a solidariedade como um obstáculo que deve ser eliminado ou restringido.

Ainda mais submetida aos lobbies na medida em que escapa ao controlo democrático, a União Europeia promove desta forma a concorrência entre os Estados no sentido de reduzirem as protecções e os níveis sociais, fiscais e ecológicos. Tendo renunciado a construir uma Europa social” e traído a sua promessa “de igualização no progresso das condições de vida e de trabalho”, a UE rebaixou as suas ambições para uma “base social”, ou seja, uma rede de protecção mínima destinada a salvar do afogamento os náufragos da “flexibilização dos mercados de trabalho”, a qual, em contrapartida, promove infatigavelmente. A única solidariedade que parece funcionar eficazmente na Europa é a que permitiu salvar, sem o reformar, um sistema bancário falido, inundando-o de liquidez, transferindo as suas perdas para os contribuintes europeus e mergulhando países inteiros na miséria. Sem que a nenhum momento pareça ter-se pensado em pedir contas ao banco – o Goldman Sachs – que, no caso grego, contribuíra para a maquilhagem das contas públicas. É verdade que inúmeros líderes europeus de primeiro plano são originários deste banco, que granjeou mais recentemente, em contrapartida, os serviços de um antigo presidente da Comissão Europeia.

Contrariamente às ilusões neoliberais, nenhuma sociedade humana pode durar sem solidariedade e sem outro projeto comum que não seja a competição entre os seus membros. Não podendo ser instituídas democraticamente, as solidariedades reaparecem sob bases identitárias, étnicas ou religiosas, abrindo a via aos demagogos e à violência. Por todo o mundo, nos Estados Unidos como na Índia, no Reino Unido ou nos outros países europeus, estes demagogos imputam com efeito aos estrangeiros as injustiças sociais sobre as quais medram, sem enfrentar as suas causas económicas, porque partilham o mesmo credo neoliberal dos partidários da “abertura”. Reciprocamente, estes últimos vêem a diversidade das heranças históricas e culturais como um arcaísmo e promovem um mundo uniforme e líquido do qual seriam os missionários inspirados. A experiência sangrenta das duas guerras mundiais tinha, contudo, conduzido a comunidade internacional a afirmar duas vezes, primeiro na Constituição da OIT em 1919, de seguida na Declaração de Filadélfia em 1944, que “uma paz duradoura só pode ser estabelecida com base na justiça social”. Esta paz duradoura era também o objectivo prosseguido pelos fundadores da Comunidade Económica Europeia. Mas tomaram, para a criar, o rodeio do estabelecimento de um mercado comum, que era suposto fazer surgir espontaneamente “um espaço de liberdade, de segurança e de justiça”. Este rodeio económico, que se pretendia ser um meio de reunificação política da Europa, tornou-se no seu fim primordial, sem que a consagração jurídica tardia de outros valores tenha conseguido até agora pôr a economia ao serviço da sociedade.

Por conseguinte, coloca-se a questão de saber se os princípios de dignidade, de democracia e de solidariedade consagrados pela Carta e nos Tratados, são poeira para os olhos, uma maquilhagem jurídica destinada a dar um rosto humano “às forças impessoais do mercado”, ou se é ainda possível canalizar estas forças, “encastrar” o mercado na sociedade europeia, subordinando-o a estes princípios. É esta a questão essencial que deveria ser debatida nas próximas eleições europeias. No que nos diz respeito, queremos acreditar que é ainda possível reanimar a União Europeia assegurando a primazia dos ideais que proclama sobre a dogmática económica e monetária que está a conduzi-la ao abismo.

 A UE reencontrará o seu crédito e a sua legitimidade apenas na medida em que se afirmar como uma Europa da cooperação mais do que de competição. Uma Europa apoiada na rica diversidade das suas línguas e das suas culturas, em vez de tentar nivelá-las ou uniformizá-las. Uma Europa de projetos, trabalhando para reforçar a solidariedade do continente a fim de responder aos desafios que nenhum Estado pode enfrentar isoladamente – e apenas a estes. Esta solidariedade deve exercer-se quer no plano interno, entre os Estados-Membros, quer no plano externo, através de acordos de cooperação com outros países que partilham objetivos comuns, começando pelos vizinhos mais próximos. Com o poder do seu mercado, a UE parece ser a única entidade em condições de lutar contra o que Franklin Roosevelt designava “o dinheiro organizado”, de separar os bancos de depósitos e de investimento e de imitar o poder de criação monetária destes. A única capaz de impor aos operadores económicos de todas as nacionalidades que operam no continente europeu regras à altura da gravidade dos perigos ecológicos, da multiplicação das desigualdades, da concorrência fiscal mortífera que conduz à degradação dos equipamentos e dos serviços públicos, das infraestruturas rodoviárias e ferroviárias. A única capaz de criar um quadro jurídico comum que favoreça o desenvolvimento, entre os Estados e o mercado, da economia social e solidária, dos bens comuns e das múltiplas formas da solidariedade civil. No domínio tecnológico, só a UE está em condições de apoiar campeões europeus com poder para preservar as liberdades públicas lutando contra os monopólios hoje exercidos pelas GAFA e amanhã por empresas chinesas. Só ela poderá dotar-se de um Ministério Público europeu dispondo dos meios necessários para impedir a imposição extraterritorial do direito americano às empresas europeias. A única com meios para concluir com os países da África uma parceria estratégica que, em vez de os comprometer à força nos impasses ecológicos e sociais do neoliberalismo, lhes permita definirem eles mesmos as vias de um desenvolvimento duradouro, fundado sobre o melhor da herança cultural de cada um deles. A única capaz de responder, com base nestes princípios, de maneira equilibrada à questão das migrações, não cedendo um milímetro aos demagogos sobre o respeito intransigente da dignidade e dos direitos dos migrantes e dos requerentes de asilo e trabalhando ao mesmo tempo para garantir o direito, quer se seja senegalês, italiano, maliano, tunisino ou grego, a viver decentemente do seu trabalho sem ter de se exilar.

Esta refundação da União com base nos princípios que proclama e nas tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros pressupõe, como primeira condição, não somente a restauração mas, mais do que isso, o aprofundamento da democracia a todos os níveis da decisão política – local, nacional e europeu. Michel Aglietta e Nicolas Leron propuseram ideias muito estimulantes neste sentido, como as que, retornando às fontes primeiras da democracia representativa (“no taxation without representation”) propõem dotar a União de recursos orçamentais próprios (nomeadamente através da tributação das transações financeiras) atribuídos a objetivos de desenvolvimento duradouro definidos e controlados pelo Parlamento Europeu, devolvendo simetricamente aos Estados as suas capacidades orçamentais próprias, sem as quais a sua vida democrática fica privada de substância [7]. Esta perda de substância afecta hoje por ricochete todas as formas de democracia local e de democracia social, cujos recursos são drenados por governos que não têm outra bússola que não seja a governança pelos números, pela qual se rege a Zona Euro. Por conseguinte, como sublinhou Étienne Balibar, não é o regresso ou a restauração das formas tradicionais da democracia que devemos procurar, mas um verdadeiro renascimento desta a todos os níveis da vida política [8]. Sem tal renascimento democrático, “as elites dirigentes” continuarão isoladas da experiência infinitamente rica e diversa da vida dos povos e presas fáceis dos demagogos.

Alain SUPIOT, Professor do Collège de France (Chaire “État social et mondialisation: analyse juridique des solidarités”)

Andrea ALLAMPRESE, Professor da Universidade de Modena e Reggio Emilia

Laurence BURGORGUE-LARSEN, Professora de Direito Público da Universidade de Paris-Sorbonne

Irena BORUTA, Antiga professora da Universidade Cardeal Wyszynski (Varsóvia), antigo membro do Comité de Negociadores para a adesão da República da Polónia à União Europeia (1998-2001)

Maria CASAS BAHAMONDE, Professora da Universidade Complutense de Madrid, antiga presidente do Tribunal Constitucional Espanhol, presidente da Associação Europeia de Direito do Trabalho e da Segurança Social

Christina DELIYANNI DIMITRAKOU, Professora da Universidade Aristóteles de Salónica, directora do Centro de Direito Económico Internacional e Europeu

Franciszek DRAUS, Investigador em Ciências Políticas (Berlim)

Gaël GIRAUD, Director da Investigação do CNRS

Ota de LEONARDIS, Professora da Universidade de Milano Bicocca, directora do Centro de Estudos de Sociologia e Acção Pública

Paul MAGNETTE, Professor da Universidade Livre de Bruxelas, antigo Ministro-Presidente da Valónia

Alexandre MAITROT DE LA MOTTE, Professor da Universidade Paris-Este Créteil

António MONTEIRO FERNANDES, Professor do Instituto Universitário de Lisboa

Ulrich MU¨CKENBERGER, Professor Emérito da Universidade de Hamburgo, director da Investigação da Universidade de Bremen

Be´atrice PARANCE, Professora de Direito da Universidade UPL Paris 8 Vincennes Saint-Denis

Étienne PATAUT, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Paris-Sorbonne, director da Escola Doutoral de Direito

Claude-Emmanuel TRIOMPHE, Conselheiro do Alto-Comissário para o Empenhamento Cívico (França)

Fernando VASQUEZ, Consultor em Assuntos Europeus, antigo membro da Direção-Geral dos Assuntos Sociais da Comissão Europeia

[1] Albert O. Hirschman, Exit, Voice and Loyalty. Response to Decline in Firms, Organizations and States, Harvard Univ. Press, 1970.
[2] Pierre Mendès-France,  Discurso de 18 de Janeiro de 1957 na Assembleia Nacional por ocasião do debate sobre a ratificação do Tratado de Roma (Journal officiel de la République française 19 janvier 1957, n° 4, p. 166).
[3] Dieter Grimm, Europa ja - aber welches?: Zur Verfassung der europäischen Demokratie, Beck 2016, 288 p.
[4] Jürgen Habermas, Zur Verfassung Europas, suhrkamp 2011, 48-82.
[5] Friedrich A. Hayek, The Economic Conditions of Interstate Federalism, The New Commonwealth Quarterly, V, No. 2 (September, 1939), 131–49.
[6] Cf. Fritz Scharpf, Governing In Europe: Effective and Democratic? Oxford University Press, 1999, 256 p.
[7] M. Aglietta & N. Leron, La double démocratie. Une Europe politique pour la croissance, Paris, Seuil, 2017, 197 p.
[8] E. Balibar, Union européenne, Europe, Démocratie, Ed. Du bord de l’eau, 2016, 326 p.

Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico

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