Um caso sério no fado

Há muito apontada como um nome do fado prestes a explodir na popularidade, Sara Correia lança aos 25 anos um impressionante álbum homónimo assente em tradicionais. Diz que nasceu para isto. E é difícil duvidar.

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Isabel Pinto

Na discreta placa que assinala a entrada do Clube Lisboa Amigos do Fado pode ler-se que, além da escola de fado, canto e música, a casa gerida por Armando Tavares anuncia a “prospecção de novos talentos”. E há muito que assim é. Naquele piso térreo que se escapou a cair no destino de ser arrecadação de um prédio de Chelas, em Lisboa, mas longe dos circuitos turísticos, as paredes de betão ganharam não apenas uma pintura e um aspecto caloroso ao longo dos anos, como acumularam uma história que está profusamente documentada nas dezenas de fotografias de fadistas e músicos que ali começaram as suas carreiras. Estão lá figuras de referência como Fernando Maurício, o mais esquivo dos grandes nomes do fado, referência obrigatória no meio fadista durante décadas, até Ana Moura ou o guitarrista que hoje a acompanha, Ângelo Freire.

Nas tardes de domingo o público disputa as mesas – sempre poucas para tanta gente que chega à procura do fado mais castiço, genuíno e popular – que são vista privilegiada para sessões em que brilham nomes ainda longe de estarem na ponta da língua do grande público. Muitas vezes, é uma questão de tempo. Por ali têm começado muitos dos intérpretes maiores da praça. Por ali se iniciou também Sara Correia. Quando, ainda criança, foi aconselhada a cantar fado e houve quem lhe recomendasse ir aos Amigos do Fado, saiu de casa sem avisar a mãe e, como vivia nas proximidades, foi sozinha apresentar-se ao senhor Armando e pedir para cantar. “E assim começou toda a minha história”, diz ao Ípsilon, sentada na sala onde decorrem as actuações domingueiras – não por acaso, ela chama às casas de fados “a nossa igreja” –, com instrumentistas e cantores posicionados debaixo de uma reprodução do emblemático O Fado, de José Malhoa.

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Sara Correia tem o condão de fazer crer que quando a ouvimos é sempre a primeira ou segunda vez que aborda um fado Isabel Pinto

Ao olharmos para a ficha técnica de Sara Correia – aquele que considera o primeiro álbum da sua discografia, ainda que não renegue Destino, gravação de adolescência e prémio da vitória, em 2007, tinha então 12 anos, na Grande Noite do Fado – percebemos o quanto do seu presente é obra deste lugar: a acompanhá-la estão Diogo Clemente (viola de fado e produção) e Ângelo Freire (guitarra portuguesa), músicos com quem passava tardes nos Amigos do Fado a “tirar tons” e a descobrir os seus caminhos por entre o labirinto exigente dos fados tradicionais. Era o passo a seguir a sentar-se em casa, aos sete ou oito anos, “com um caderno, em frente a uma aparelhagem antiga da Kenwood”, em que punha uma cassete da sua tia também fadista (Joana Correia) a tocar e, premindo centenas de vezes o botão de play/pause, “passava as letras todas para depois poder cantar por cima da voz dela”.

Não foi preciso muito mais do que esta dedicação empenhada e os ouvidos à escuta para saber o que fazer com as palavras. Passado pouco tempo, quando chegou a vitória na Grande Noite do Fado, Sara Correia tratou de traçar a sua própria linha do destino na mão, qual Corto Maltese, e garantir que esta a levava para as casas de fados – primeiro a Mesa de Frades, onde se estreou como profissional, depois o Bacalhau de Molho, onde partilhou as noites com Celeste Rodrigues, Cidália Moreira, Maria da Nazaré ou Jorge Fernando e cumpriu com o mandamento da sua mãe que lhe dizia “Filha, temos duas orelhas e uma boca, por isso temos de ouvir o dobro do que falamos”. “Foi um sonho”, recorda, sublinhando os muitos ensinamentos que bebeu de Jorge Fernando e, sobretudo, “da dona Celeste, porque é difícil hoje em dia ter a possibilidade de cantar com alguém que seja uma tão grande referência para mim”.

Até porque as grandes referências de Sara Correia, como convém a quem jura a pés juntos querer dedicar a sua vida ao fado tradicional – “É essa a minha essência, é para isso que nasci, tenho a certeza absoluta”, afirma –, estão bem lá atrás: Amália Rodrigues e Fernanda Maria (já retirada e para quem cantou há alguns anos, no Marquês da Sé, numa noite em que “tremia que nem varas verdes”), acima de todas as outras; Joana Correia e Celeste Rodrigues pela proximidade e por serem as fontes mais directas; Lucília do Carmo ou Beatriz da Conceição, explicitadas na inclusão de fados dos reportórios de ambas neste disco de estreia (Zé Maria e Veio a saudade, respectivamente).

“Quero sempre cantar outros fadistas, aqueles que me preenchem mais a alma”, garante a cantora de 25 anos, numa posição que tem tanto de vinculação – mostrando-nos de onde vem e de quem se considera herdeira – quanto de missão em lembrar nomes que considera imprescindíveis não só à sua história pessoal mas também à história do fado. E é por isso que se imagina, num próximo álbum, a gravar temas de Ana Rosmaninho ou outras vozes cedo desaparecidas e rapidamente deixadas cair no esquecimento.

Três rápidos anos

Sara Correia, assim baptizado porque a fadista diz cantar-se em cada um destes temas – como se neles pudesse ler-se a sua biografia, mais ou menos encapotada para ouvidos desconhecidos –, tem início com uma subtil mas inteligente apresentação do que nos espera. Fado português, espantoso tema do reportório de uma Amália Rodrigues (música de Alain Oulman para poema de José Régio) que Sara descreve como sendo “uma imensidão, o fado em pessoa”, arranca apenas com a voz da cantora, como se, por momentos, desviasse os instrumentos da nossa atenção para nos dizer aquilo a que devemos estar atentos. É uma voz de soberbo ataque, imponente, de uma projecção que nos prende à cadeira se diante dela estivermos na casa de fados onde actualmente se apresenta (Páteo de Alfama), de charmosos graves amalianos e tão cheia de uma alma tradicional que não deixa grandes dúvidas quanto à verdade que lhe pulsa nas veias. Em Fado português é quando, de facto, conseguimos enganar o artifício do estúdio e sentir Sara Correia diante de nós, a soltar um canto que é todo vísceras e emoções em rebuliço.

Daí que o álbum produzido por Diogo Clemente apenas peque quando permite que a instrumentação se torne demasiado presente e dispute a atenção da voz – o que acontece no fado-balada Agora o tempo, com a percussão desnecessária a impor-se em demasia e a limitar o alcance de Sara, e no tema final, Se o mundo dá tantas voltas, quando o arranjo para a criação de Alfredo Marceneiro com letra de Linhares Barbosa exagera o dramatismo (mesmo que aponte à subtileza) no recurso a programações e sintetizadores.

Em tudo o resto, no entanto, o tom é certeiro. E cuida de não atrapalhar o rasgo vocal de Sara Correia, tão confortável em temas mais populares (Zé Maria ou Lisboa e o Tejo) ou a rasar o fado-canção (Quando o fado passa, nos arrabaldes de Ana Moura), como nos registos mais sofridos que assume serem a sua mais enraizada natureza (excelente em Sou a casa, O meu bom ar ou Hoje). Como o marinheiro de Régio em Fado português, “que, estando triste, cantava”, também Sara Correia se sente atraída pelas letras que lhe trazem à memória os seus próprios tormentos amorosos. “Este disco”, descreve, “fala muito de amor, mas daquele amor complicado. E é uma emoção muito grande, difícil de explicar, quando cantamos aquilo por que realmente passámos. Não são só letras para fazer uma música, são histórias de vida e são histórias minhas.”

E foi precisamente para garantir que os fados deste Sara Correia lhe ficavam tão rente à pele quanto se pudessem confundir com a sua vida que, entre o momento inicial da proposta de Diogo Clemente para avançar para estúdio e a edição que acontece a 14 de Setembro, se passaram três anos de pesquisa. “Três anos muito rápidos”, diz, passados na escolha criteriosa dos fados e dos poemas a registar, no muito estudo a “ouvir quem sabe”, na escrita de versos pelo próprio próprio Clemente inspirados pelo conhecimento que tem do percurso profissional e pessoal da cantora, e numa espaçada gravação que permitiu ao álbum crescer sem pressas, à medida que os temas se iam afirmando nessa fase de peneiração. Esse regime pouco intenso havia de permitir situações como a de Sou a casa, letra de Diogo Clemente no Fado Joaquim Campos, gravado ao primeiro take, enquanto Sara Correia reagia às palavras que tinha acabado de ler.

É essa espontaneidade que conquista em Sara Correia, esse condão de fazer crer que quando a ouvimos é sempre a primeira ou segunda vez que aborda um fado, como se nem o mais clássico e remoto tradicional tivesse tempo de envelhecer um só dia na sua voz.

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