Rimbaud: primeiro poeta de uma civilização ainda por surgir

Uma edição que não será exagero considerar histórica reúne toda a poesia de Rimbaud e as suas cartas. Pela primeira vez traduz-se entre nós, de forma integral, a obra do poeta máximo da modernidade.

Foto
Auto-retrato de Rimbaud em Harar (Etiópia) em 1883

“De Rimbaud, da sua obra e seus feitos, continua a estar tudo dito, já que todas as exegeses são possíveis e algumas serão, até, de aconselhar.” Disse-o Mário Cesariny (As Mãos na Água a Cabeça no Mar, Assírio & Alvim, 2015), que foi tradutor e conhecedor iluminado de Rimbaud. Tradutor “mítico” e, logo, “supremo”, de acordo com a sua máxima, roubada a Novalis (que Cesariny, igualmente, verteu…). Ciente como poucos da “alucinação das palavras” (p.367) da escrita rimbaldiana, da sua “alquimia do verbo” (p.367), é possível que Cesariny continue a ser um dos mais preclaros guias para quem, com toda a certeza, desprezaria a ideia de um cicerone. E algo que Cesariny, de resto, nunca quis ser. Porque, com Rimbaud, nunca se está ao lado da literatura, nem da ordem, mas do caos e da poesia como expressão máxima da vida. Tudo começa por nunca se estar “ao seu lado” — mas contra, em duro embate. Sempre na iminência de um golpe, perante o perigo constante de deflagrar um incêndio. Mas nem sequer se “está”. Tudo é outra coisa — “A verdadeira vida está ausente. Não estamos no mundo” (p.357), escreveu o poeta em Uma Temporada no Inferno. Esta edição da obra de Rimbaud, que não hesitaríamos em chamar histórica, tem um prefácio, da autoria do editor Francisco Vale, intitulado, precisamente, “A Vida Está noutro Lado”.

Como Vale sublinha, a obra de Rimbaud não deixará de antecipar o que viria a ser a sua aventurosa e dispersiva vida depois de abandonar a poesia e as paragens europeias — “A minha jornada está feita; vou deixar a Europa. O ar marinho queimará os meus pulmões; os climas perdidos tisnar-me-ão. Nadar, calcar a erva, caçar e sobretudo fumar; beber licores fortes como metal a ferver — como faziam esses caros antepassados à volta das fogueiras. Regressarei, com membros de ferro, a pele escura, o olhar furibundo; pela minha máscara, julgar-me-ão de uma raça forte. Terei ouro: serei ocioso e brutal.” (p.341); “Amei o deserto, os pomares queimados, as lojas fanadas, as bebidas requentadas.” (p.369) “Anjo no exílio”, como lhe chamou Verlaine (Les Poètes Maudits), Rimbaud parecia querer extirpar de si todo o artificialismo, qualquer laivo de mesura ou domesticação. O seu abandono da escola, sendo ele um aluno relutante mas exemplar — “O miúdo, que, de resto, conhecia e, sobretudo, apreciava infinitamente melhor os clássicos do que aquele velhadas [o bibliotecário de Charleville]” —, é apenas um dos primeiros sinais dessa pulsão de desobediência. Escrevendo a Izambart, o professor de Retórica de Rimbaud que a fama do aluno tornou, também, ilustre, o poeta provocava-o assim: “Ei-lo de novo professor. Disse-me que estamos em dívida para com a Sociedade; faz parte dos corpos docentes: está no bom caminho. — Também eu sigo esse princípio: tento cinicamente conservar-me; desenterro velhos imbecis do colégio; atiro-lhes tudo o que posso inventar de estúpido, de porco e de mau, em acções ou em palavras” (p.518). “Essa história das Mil e Uma Noites, que é, ao mesmo tempo, uma história verdadeira, a vida de Rimbaud” (Arthur Symons, The Symbolist Movement in Literature), foi a experiência duramente levada a cabo ao longo de toda a vida e obra do poeta. Charleville, a terra natal, encerrava, no cosmos rimbaldiano, um aglomerado nefasto de tudo quanto o poeta mais desprezava. Uma carta a Ernest Delahaye exprimia os seus votos mais ímpios — “Desejo com muita força que a Ardena seja ocupada e espremida cada vez mais desmesuradamente.” (p.550); o seu diagnóstico é arrasador: “A minha terra natal é superiormente idiota entre as pequenas aldeias de província.” (p.509) Fuga para Paris, périplo europeu, depois africano, mais não foram do que manifestações geográficas de uma incapacidade irreprimível de ser domesticado — “a domesticidade leva longe de mais” (p.337), escreveu em “Mau Sangue”, de Uma Temporada no Inferno. A mesma razão que levava o poeta a temer o Inverno por ser a estação do conforto. Conforto foi coisa que nunca teve a sua vida de caminheiro, aventuroso explorador e ser vivo integral — nem a sua poesia. Ao aconchego, o poeta sempre preferiu o ar livre, a caminhada perigosa e aniquiladora, a façanha. A lisura, troca-a por tudo quanto há de mais rugoso, seja um abrigo, um manuscrito malbaratado, uma vestimenta em desalinho. Ao bem-estar, cede sempre um desconforto essencial. Como François Villon, porventura arquétipo maior do poeta maldito, Rimbaud poderia ter escrito: “O lixo amar, lixo nos faz benquisto;/ Não se guarde honra, à fuga dela assisto,/ no bordel que este estado nos precate” (Os Testamentos de François Villon e Algumas Baladas Mais, Campo das Letras, 1997, trad. Vasco Graça Moura). E não deixou de o fazer. Se, num poema como “Os Sentados”, cantou o lúgubre apelo de uma torpeza que se faz sensual e convulsa — “os dedos rolhos crispados sobre os fémures/ O sincipúcuo chapeado de vagas rancorosidades/ Como as florescências leprosas dos velhos muros;/ Em epiléticas demonstrações de amor” (p.213) —, Uma Temporada no Inferno expunha claramente a sua repulsa pelas convenções e o açaimo dos bons costumes — “A moral é a fraqueza do cérebro.” (p.373) “De Rimbaud poderia dizer-se que, tentando escapar ao inferno teológico, fechou sobre si as portas do inferno na terra.” (Mário Cesariny [de Vasconcelos], Uma Época no Inferno, Portugália, 1960, “essa espécie de evangelho gnóstico” [p.11], como lhe chama Francisco Vale). Daí a quebra, uma fuga que é expansão e crescimento até à assunção de um eu que se crê o mais verdadeiro. “Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud!”, escreveu René Char. “Os teus dezoito anos refractários à amizade, à malevolência, à estupidez dos poetas de Paris, bem como ao ronronar de abelha estéril da tua família ardenesa um pouco louca, fizeste bem em dispersá-los ao vento do largo, em atirá-los para debaixo da sua precoce guilhotina. Tiveste razão em abandonar o boulevard dos preguiçosos, os estaminés dos poetas de meia leca, trocando-os pelo inferno dos animais, trocando-o pelo comércio dos astutos e pelos bons-dias dos simples.” (Furor e Mistério, Relógio D’Água, 2000, trad. Margarida Vale de Gato).

A escrita é aqui realização desmedida. A vida, finalmente, derradeiramente, aterra nesta recusa implacável de método e ditame. Um método, todavia, há por aí, nesta escrita que esfacela em seu redor. Método que prescinde de todos os outros por conhecimento cabal e superação de qualquer um. Um pouco à maneira da imagem do muito jovem Rimbaud que teria devorado toda a existência da sua biblioteca local. Num livro certamente datado, mas que talvez não tenha pouco a dizer-nos, ainda, Arthur Symons escreveu, citando Félix Féneon, que Rimbaud escrevia “talvez fora da literatura” (The Symbolist Movement in Literature). A acção desta poesia está não apenas num desejo cumprido de ser “absolutamente moderno” (p.389), mas em constituir um absoluto que já tinha transcendido os limites temporais com que se procura lidar com aquilo que vive entre elementos ígneos. Lá onde corpo e espírito confundiram, há demasiadas eras, os seus membros enlaçados, a pele que há tanto trocaram por partilha de células essenciais. Conforme escreveu o mesmo Cesariny, “Enquanto Verlaine programa a geração simbolista (…), Rimbaud abre a estrada do surrealismo, dando-nos uma experiência muito mais próxima da endemonia que dos cuidados da expressão literária” (As Mãos na Água…). Prefaciando uma edição dos poemas de Rimbaud, René Char escreveu que “Rimbaud é o primeiro poeta de uma civilização ainda por surgir”.

Assinada por dois tradutores — Miguel Serras Pereira e João Moita —, esta tradução de Rimbaud dispersa a força irrefragável do poeta por um esforço realmente repartido. Tanto MSP, quanto JM, traduziram poemas e cartas, não havendo, por hipótese, uma separação das versões por géneros. Nesse particular, importará sublinhar que esta edição inclui “toda a poesia de Rimbaud e uma extensa selecção das suas cartas (excluíram-se os poemas em latim, os exercícios escolares e cartas comerciais irrelevantes)” (da ficha técnica). O que significa que estão presentes a sua poesia em verso e aquela que o poeta escreveu em prosa, e é, possivelmente, parte muito significativa da sua melhor poesia. Ou seja, Uma Temporada no Inferno e Iluminações, mas também a sua poesia “lírica” (carreguem-se todas as aspas), da qual nunca se afasta muito a sátira, o que contempla poemas tão diversos como “Ofélia”, “A Minha Boémia”, “As Cata-Piolhos”, “Soneto do Olho do Cu” (parte do “Album Zutique”); e os próprios títulos revelarão como a irreverência sempre foi algo mais do que um sinal de idade para quem deixou a escrita antes de completar vinte anos.

Com Rimbaud, escreveu Hugo Friedrich, “estamos no umbral onde a poesia moderna começa a deixar-se sugestionar pelo caos do subconsciente, novas experiências que o gasto material do mundo já não pode dar-lhe.” (Estrutura da Lírica Moderna) “O seu caos irreal”, defendeu o mesmo Friedrich, “era uma emancipação da realidade opressiva”. E Verlaine dissera já, em Les Poètes Maudits: “O homem, em Rimbaud, é livre”. Numa das suas muitas cartas a Izambard, escreveu Rimbaud: “estou terrivelmente decidido a venerar a liberdade livre” (p.516). Uma redundância formal que se tornaria lendária e mesmo um dos emblemas de Rimbaud. E seria tudo menos uma simples repetição de ideias, em quem tão completamente pôr em prática a ideia de ser livre.

Sugerir correcção
Comentar