A guerra, na tela

Estudo monográfico sobre Adriano de Sousa Lopes, pintor de guerra — e mais do que isso.

Foto
Portugal na Grande Guerra, uma sepultura portuguesa na terra de ninguém, uma das extraordinárias águas-fortes executadas em 1917-1921

No imenso caudal de obras dedicadas à participação portuguesa na Grande Guerra, este é um livro que se destaca. Desde logo, porque, ao invés de se centrar sobre os aspectos políticos, diplomáticos ou militares do conflito de 14-18, o presente estudo constitui uma exaustiva — e crê-se que definitiva — monografia sobre o pintor Adriano de Sousa Lopes (1879-1944), fruto da dissertação académica em História da Arte que o seu autor, Carlos Silveira, defendeu em 2016 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (e que, sublinhe-se, actualizou para a presente edição, incorporando, por exemplo, o catálogo da exposição sobre Almada Negreiros, de 2017). Por outro lado, e mais decisivamente, porque este livro, ao contrário do que o subtítulo pode sugerir (“Um pintor na Grande Guerra”), vai muito para lá das trincheiras da Flandres, acompanhando a trajectória artística de Sousa Lopes até à sua morte, um período onde avultam trabalhos que nada têm a ver com a “pintura de guerra” (v.g., os painéis no Palácio de São Bento), ainda que neles ecoem o som e a fúria das telas de grande formato que hoje se encontram no Museu Militar, em Lisboa, em resultado de uma acção concertada e profícua — mas polémica — do pintor com o arquitecto José Luiz Monteiro. Merecem realce, a este propósito, os óleos A Rendição (c. 1919-1920) e Remuniciamento da Artilharia, de 1932.

Compreende-se, pois, que a Grande Guerra constitua o leit-motiv deste livro, que surge na sequência de vários trabalhos de Carlos Silveira sobre Sousa Lopes (a quem dedicara já a sua dissertação de licenciatura, em 1999) e, numa perspectiva mais lata, sobre as artes de 1914-1918 e sobre o fotógrafo Arnaldo Garcez. Daí que, ao contrário do que se possa supor, este livro seja muito mais do que um simples ensaio monográfico sobre Sousa Lopes — o que, em si mesmo, já representaria um trabalho de grande valia. Não se limitando a isso, um dos grandes méritos desta obra reside, por um lado, no enquadramento da actividade do pintor na cultura visual da Primeira Guerra e, mais especificamente, no movimento propagandístico, levado a cabo em vários lugares (Reino Unido, Canadá, Estados Unidos, Bélgica), tendente à instauração de uma “arte oficial” do conflito mundial; por outro lado, esta é uma investigação de grande importância para a compreensão do memorialismo de guerra e para as políticas oficiais geradas em seu redor, tópico sobre o qual Jay Winter se debruçou no influente Sites of Mourning. Sites of Memory. The Great War in European Cultural History, de 1995, seguido de perto entre nós por Sílvia Correia (Entre a Morte e Mito. Políticas da memória da I Guerra Mundial, 2015). Carlos Silveira mostra-se plenamente familiarizado com estes contributos historiográficos e o seu livro assenta em sólida, vasta e pertinente bibliografia, na qual se notam escassas lacunas, das quais as mais relevantes são os vários escritos de João Medina sobre o período republicano e o sidonismo (inclusive no campo cultural e artístico), nomeadamente o seu O Pelicano e a Seara. A revista “Homens Livres”, de 1978.

Sousa Lopes candidatou-se, com êxito, ao lugar de pintor oficial do Corpo Expedicionário Português, e a sua passagem pelo front deixa marcas que se prolongam muito para além do armistício, nomeadamente nas extraordinárias águas-fortes executadas em 1917-1921, na decoração dos cemitérios em França, na secção dedicada ao Exército português no Musée de l’Armée, em Paris, e em aspectos menos conhecidos e agora revelados, como a participação do artista numa gigantesca obra colectiva internacional, o Panthéon de la Guerre, um colossal panorama de 123 metros inaugurado em 1918 num edifício anexo aos Invalides, e onde Sousa Lopes faz os retratos, hoje desaparecidos, de Bernardino Machado, Sidónio Pais e Norton de Matos.

O convencionalismo e o academismo da sua pintura, a par do impacto visual das suas composições pictóricas de grande escala, explicarão a sintonia da obra de Sousa Lopes com o gosto de vários regimes políticos. Na verdade, e em paralelo com a sua actividade como pintor, Adriano de Sousa Lopes exerceu, na República como no Estado Novo, funções de relevo enquanto responsável da secção de Belas-Artes no pavilhão português da Exposição Internacional Panamá-Pacífico (1915), artista oficial do CEP (1917), director do Museu Nacional de Arte Contemporânea (cargo para que, sucedendo a Columbano e por indicação deste, foi designado em 1929 e que ocuparia até à morte, em 1944).

Homem de vários regimes, com conexões profundas à oficialidade republicana que se batera na Flandres (e que comparecerá em peso ao seu funeral), não é fácil perceber a sua orientação política e ideológica, ponto que este livro não desenvolve, porventura por escassez de fontes. Beneficiando do patrocínio de coleccionadores como Carlos Luís Ahrends e de fortes apoios no meio militar, com destaque para Vitorino Godinho, com atelier aberto na Casa do Regalo, às Necessidades, sócio do Rotary Club e de outras agremiações, Sousa Lopes animou diversas iniciativas em memória dos caídos na frente ou a favor das suas viúvas, fez palestras concorridas e divulgadas na imprensa, viu as suas obras nas capas de livros sobre a Grande Guerra, realizou exposições inauguradas por presidentes da República, adquiriu projecção internacional em França, país onde manteve várias e duradouras ligações. Não foi, de modo algum, um marginal ou um maldito. Em 1936, um despacho de Passos e Sousa, então ministro da Guerra, rescinde o contrato celebrado em 1918 para a realização das pinturas no Museu Militar. O pintor recorre para o Supremo Tribunal Administrativo e busca, sem êxito, a intercessão de Oliveira Salazar. A tudo isto, no entanto, foram alheias considerações de ordem política, como se comprova pelo facto de, logo no ano seguinte, em 1937, Adriano de Sousa Lopes ter sido contratado para pintar os murais a fresco do salão nobre da Assembleia Nacional, tarefa que inicia em 1941 e em que trabalhou até às vésperas da morte, em Abril de 1944 (as pinturas serão terminadas em 1945 por Domingues Rebelo e Joaquim Rebocho).

Carlos Silveira ilumina, de um modo esclarecedor e informado, o percurso de um pintor que, aprecie-se ou não o seu estilo, teve uma importância maior do que julgávamos na arte portuguesa da primeira metade do século XX. Este livro faz-lhe justiça, com base em muitos elementos até aqui desconhecidos. Modelar.

Sugerir correcção
Comentar