O álbum mais soft dos Soft Machine, “experimental, mas também muito melódico”

Aos 14 anos, Ana Deus deitava-se no chão da casa dos pais, em Santarém, a ouvir Softs (1976). “O disco começa muito bem, muito tranquilamente, e depois leva-te com ele até aos temas mais efervescentes”.

Foto
Ana Deus PAULO PIMENTA

“Nos álbuns que ouvia na altura as músicas eram todas cantadas, tinham vozes, e Softs era uma excepção, porque era totalmente instrumental, mas eu adorava esse disco, gostava de o ouvir deitada no chão da sala, e ficava cheia de calor só com o som, aquilo mexia muito comigo”, conta Ana Deus.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

“Nos álbuns que ouvia na altura as músicas eram todas cantadas, tinham vozes, e Softs era uma excepção, porque era totalmente instrumental, mas eu adorava esse disco, gostava de o ouvir deitada no chão da sala, e ficava cheia de calor só com o som, aquilo mexia muito comigo”, conta Ana Deus.

Memórias da adolescência, de quando tinha 13 ou 14 anos e vivia o pós-25 de Abril em Santarém, “lugar um bocadinho conservador e atrofiado”, e quem lhe valia eram os amigos retornados. “Notava-se que vinham de terras maiores, eram gente de largos horizontes, muito mais modernos… e traziam discos”. Softs foi uma das descobertas que ficou a dever a um amigo moçambicano, cujo nome civil esqueceu, mas a quem todos chamavam Xai-Xai porque tinha vindo dessa cidade.

E para uma adolescente que gostava de música na Santarém dos anos 70, ter um Xai-Xai por perto deve ter sido mesmo um privilégio: “Deu-me o primeiro álbum dos Pink Floyd, mas também discos dos Can, do [Frank] Zappa, dos Led Zeppelin, e eu adorava-os todos, mas o Softs, de alguma forma, era diferente”.

A cantora e compositora dos Três Tristes Tigres e de projectos mais recentes, como Osso Vaidoso, Bruta ou Ruído Vário, descreve Softs como “um disco experimental, mas também muito melódico, talvez, como o título sugere, o mais soft dos Soft Machine”.

Nono álbum de estúdio na discografia de uma das mais influentes bandas britânicas da chamada Canterbury Scene, Softs é lançado em 1976, quando já tinham saído os quatro fundadores dos Soft Machine – Mike Ratledge, Robert Wyatt, Kevin Ayers e Daevid Allen –, ainda que o primeiro apareça como músico convidado e colabore em dois temas.

“O disco começa muito bem, muito tranquilamente, e depois leva-te com ele até aos temas mais efervescentes”, nota Ana Deus. “Fui conduzida pelo próprio disco, e se a primeira música fosse uma das outras se calhar nem tinha chegado ao fim”. Mas estava tudo no sítio certo e Softs tornou-se um dos álbuns da sua vida. “Há uns anos, quando estive a relembrar a música que ouvia nessa época, reencontrei-o no YouTube e ainda gostei de o ouvir”.

E se não reconhece propriamente influências de Softs no seu próprio trabalho, acha que esse e outros discos que ouviu obsessivamente na adolescência “foram importantes” na sua formação musical. “Eram coisas mais rock, quando o que se ouvia em Portugal na altura era mais pop, como os Beatles ou os Queen”.

Outro disco que veio a tornar-se um dos preferidos da sua adolescência, e esse comprou-o ela, foi o álbum de estreia dos Genesis, de 1969, originalmente intitulado From Genesis to Revelation, mas que a Decca reeditara em 1974 com o título In the Beginning. “Dantes a gente namorava os discos nas discotecas, que também eram lojas de electrodomésticos, e eu tinha juntado dinheiro, mas estava indecisa entre aquele disco dos Supertramp com um gajo sentado numa cadeira de praia [Crisis? What Crisis?, 1975] e o In the Beginning”, conta. “A minha mãe passou pela loja e esteve a ouvir os discos comigo, mas depois foi-se embora e deixou-me lá, a escolher. E quando Ana chegou a casa com o disco dos Supertramp, não se conteve: “Não pode ser! O outro era muito mais bonito, filha”. E foi suficientemente persuasiva para a convencer a voltar à loja e trocar os álbuns. “E lá trouxe o dos Genesis, um disco muito lírico, que se tornou um dos meus favoritos e de que ainda hoje gosto muito; agradeço à minha mãe ter melhor gosto do que eu”.

Pessoa e Ruído Vário

Há muito radicada no Porto, Ana Deus deu-se a conhecer nos Ban de João Loureiro, nos anos 80, mas rapidamente rumou a paragens menos comerciais e fundou com a poetisa Regina Guimarães e o músico Alexandre Soares uma das bandas portuguesas mais inovadoras dos anos 90, Três Tristes Tigres. Já no início desta década, em 2011, e novamente com Alexandre Soares, criou o projecto Osso Vaidoso, talvez mais decididamente experimental, mas uma vez mais encharcado de poemas, de Sá de Miranda a Alberto Pimenta. E 2018 apanha-a num momento de grande efervescência criativa, com dois discos acabados de lançar: Canções com Pessoa, uma incursão na poesia pessoana a meias com o poeta e músico Luca Argel, que resultou do espectáculo Ruído Vário, que ambos conceberam para a Casa Fernando Pessoa, e Bruta 2, que prossegue o disco lançado em 2015 com o multi-instrumentista Nicolas Tricot, dedicado a poetas loucos, suicidas e afins.

Nos concertos que deram depois de Bruta ter saído, Ana Deus e Nicolas Tricot começaram a acrescentar sempre ao reportório um poeta de cada sítio onde actuavam: Antero de Quental em Ponta Delgada, Augusto Gil na Guarda, e por aí fora. E são esses temas supranumerários que agora compõem este novo disco, que já pode ser ouvido nas plataformas digitais, mas só está à venda na Louie Louie.

Enquanto objecto físico, o CD vai chegando aos poucos ao mercado, porque Ana Deus decidiu fazer, uma a uma, as capas de cartão reciclado que envolvem cada exemplar, todos eles numerados. “Tive de guardar o cartão todo em casa, que está de pantanas, e ainda só acabei 77 capinhas, porque demoro muito tempo a fazê-las, mas achei que era uma forma de voltar a valorizar o CD como objecto”, explica a cantora.