Daevid Allen, fundador dos Soft Machine e dos Gong, começou a despedir-se da vida

O músico anunciou a semana passada que o cancro para o qual tinha sido tratado regressou e que não se submetará a mais terapias. Tem seis meses de vida.

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“Só posso desejar que, no decorrer desta jornada, tenha de alguma forma contribuído para a alegria nas vidas de alguns seres humanos” DR

Não era suposto ser assim. O fim da longa, mágica, viagem de Daevid Allen, fundador dos Soft Machine, banda charneira do rock psicadélico, e dos Gong, ícones de um rock progressivo de vistas largas feito experiência comunal, não deveria ter data tão cruelmente marcada.

Mas terá. E Allen aceita-o sem remorsos. O australiano nascido em 1938 anunciou a semana passada que o cancro para o qual tinha sido previamente tratado regressou, expandindo-se para os pulmões, e que não se submeterá a novas cirurgias ou outras terapias. Num comunicado reproduzido pela imprensa britânica, comovente manifestação de força perante a aproximação da morte (os médicos dão-lhe uma esperança de vida de seis meses), escreve não estar interessado “em intermináveis operações cirúrgicas”: “na verdade, foi um alívio saber que o fim está à vista”, confessa, antes de acrescentar, em modo tipicamente Daevid Allen, ser “um crente firme na ‘Vontade de como as Coisas São’” e ter chegado o tempo “para parar de resistir e de negar e render-me ao que tem que ser”.

Mudando-se da Austrália para Inglaterra em 1961, Allen fundaria cinco anos depois os Soft Machine com Robert Wyatt, Kevin Ayers e Mike Ratledge. Não chegaria a gravar qualquer álbum com a banda, mas a sua influência enquanto poeta beat libertário marcado pela escrita de William Burroughs e pelo jazz e filosofia cósmica de Sun Ra deixou marcas naquilo que seria a música feita pelos mais jovens companheiros de banda.

Seria já em Paris, para onde se mudara depois de deixar expirar o visto de residência em Inglaterra, que fundaria em 1970 os Gong, dois anos depois de correr as ruas da capital francesa durante o Maio de 1968, oferecendo ursos de peluche à polícia e recitando poesia entre as barricadas. Eterno viajante, abandonou a banda em 1975, depois de gravar a clássica trilogia Radio Gnome, constituída por Flying Teapot, Angel’s Egg e You. Passou parte da década de 1980 na Austrália e, em 1991, regressava com os Gong, com quem se manteve activo até ao presente. Falhou apenas, devido ao avançar da doença, a última digressão da banda, o ano passado.

“Só posso desejar que, no decorrer desta jornada, tenha de alguma forma contribuído para a alegria nas vidas de alguns seres humanos”, escreveu no comunicado, onde agradece ao público “ter iniciado o processo “ de fazer o seu luto, exortando-o depois a “celebrar esta morte que se aproxima: “É assim que podem contribuir, seria um grande prenda da parte daqueles que estão emocional e espiritualmente relacionados comigo”.
Não, não era suposto ser assim.

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