Como um thriller intelectual

Dificilmente se encontrará reunida, num só livro, como em 21 Lições para o Século XXI, uma quantidade tão díspar de questões, expostas num estilo que, apesar de cansativo nas suas blagues e no seu kitsch, torna a leitura fácil, como um thriller intelectual.

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Yuval Harari desdobra-se em palestras e TED Talks, faz conferências para os futurologistas da Google e dá aulas na Singularity University, em Silicon Valley, produz cursos online e filmes sobre os seus livros, tem um canal próprio no YouTube, publica em jornais Olivier Middendorp

O historiador israelita Yuval Noah Harari (n. 1976) tem tudo para desconfiarmos dele: autor prolífico de bestsellers mundiais aclamados pelos poderosos — Bill Gates, Barack Obama, Mark Zuckerberg —, escreve numa linguagem descaradamente sedutora, prenhe de sound bites e frases de belo efeito, nem sempre do melhor gosto. “Os algoritmos estão a observá-lo neste preciso momento”, por exemplo, não passa de um pindérico pastiche do Big Brother is watching you, a que se poderiam juntar tiradas como “As comédias românticas estão para o amor como a pornografia está para o sexo e Rambo para a guerra”, “A Big Data está de olho em ti”, “A mudança é a única constante”, “Quem detiver a informação detém o futuro”, “Problemas globais precisam de soluções globais”, “A Terra como nave espacial” ou “Algures entre 1599 e 1602, William Shakespeare escreveu a sua versão de O Rei Leão, mais conhecida por Hamlet”, e por aí fora.

Para piorar as coisas, tem opiniões sobre tudo, do aquecimento global à natureza da religião, dos avanços da biotecnologia às tecnologias da informação ou ao terrorismo transnacional. Formula grandes sínteses, que os especialistas consideram superficiais e eivadas de lugares-comuns, e não esconde que se sente imbuído da incumbência quase profética de desvendar urbi et orbi como será o futuro da humanidade. Não por acaso, logo na primeira página de 21 Lições para o Século XXI fala na sua “missão” e diz que ela consiste em “oferecer clareza às massas” para que estas “participem no debate sobre o futuro da nossa espécie”, vendo Harari os seus livros como um contributo para “pôr o mundo em pé de igualdade”. Neste particular, não se anda longe dos visionários de um passado recente, como Herman Kahn ou Alvin Toffler, tendo este último sido também, e à semelhança de Harari, autor de obras que tiveram estrondoso e efémero sucesso na sua época, com destaque para O Choque do Futuro, de 1984, mas que rapidamente foram esquecidas e substituídas por intervenções de novos profissionais da futurologia, como foi o caso, de certo modo, de Francis Fukuyama e do seu famoso O Fim da História e o Último Homem, de 1992.

A agravar este cenário, já de si dantesco, Harari resvala na iconoclastia fácil, na atracção fatal por correlações inesperadas e encenadas para nos atordoar com a grandeza do seu génio ou para concitar o aplauso da plateia. Escreve para “as massas”, como ele próprio diz, o que não o dispensaria de, desde logo, ser mais rigoroso nas fontes em que se apoia. É estranho que quem, a propósito da desinformação e das fake news, recomenda aos leitores que se baseiem na literatura científica para combater a pós-verdade (pág. 282), depois recorra abundantemente a notícias de jornais e sites noticiosos ou a informação secundária, de segunda ou terceira mão. Uma “expedição intelectual”, como a designa com imodéstia, que pretenda percorrer todos os pontos turísticos do presente e do futuro, exprimindo sobre eles opiniões originais e até desconcertantes, arrisca-se, naturalmente, a sacrificar o rigor exigido em investigações especializadas sobre temas circunscritos em torno dos quais os respectivos autores tenham desenvolvido trabalhos anteriores, corrigido erros e alterado perspectivas ao longo de anos ou décadas de labor. Não é esse, manifestamente, o âmbito em que se move Yuval Noah Harari, o que, em si mesmo, nada tem de censurável — o sucesso dos seus livros é a prova mais cabal de que atingiu os objectivos a que se propôs, sendo injusto afirmar que entre eles se encontram a fama pessoal ou o desejo de enriquecer, pois também estes são legítimos. O problema é que, com este tipo de abordagem — e para utilizar um termo sobre o qual discorre abundantemente —, Harari se arrisca a tornar-se, ele próprio, um algoritmo, ou, melhor dizendo, uma fórmula capaz de reproduzir ad nauseam livros atrás de livros sobre o passado, o presente e o futuro — ou uma mistura dos três, em que a respectivas fronteiras se esfumam e diluem, como sucedia na historiografia providencialista dos séculos XVII e XVIII, que alimentou e legitimou não poucas tiranias.

A sobreposição temporal, imprópria de um historiador, é patente neste 21 Lições para o Século XXI, apresentado como uma digressão pelo presente, após Sapiens História Breve da Humanidade, dedicado ao passado, e Homo Deus História Breve do Futuro, vocacionado para o futuro. Simplesmente, quem ler este seu mais recente livro encontrará muito pouco do presente, sendo votada ao insucesso a tentativa de descobrir aqui uma análise desenvolvida, articulada e esclarecedora da actualidade nos seus múltiplos desvarios. Sempre que fala do presente — da migrações ou de Trump, do “Brexit” ou de Putin —, Harari fá-lo para convocar o futuro, como se fosse este, ao cabo e ao resto, o domínio que o tem aprisionado, o único sobre o qual é capaz de falar às massas sem se sujeitar ao crivo de uma indagação rigorosa sobre a qualidade das suas opiniões, expressas em catadupa; o futuro, incognoscível e incerto, é território mais propício às suas incursões, o que leva a que, após a leitura deste livro, não consigamos sequer saber o que, na perspectiva do autor, explica o “Brexit” ou a vitória de Donald J. Trump, lacunas graves numa obra que afirma ter como propósito explicar o nosso tempo. Ler um livro de um historiador que se propõe explicar a actualidade e, no final, não ficar a saber como aconteceram catástrofes como o “Brexit” ou Trump é francamente decepcionante. Fala-se muito, por exemplo, em como poderá ser o trabalho e o emprego daqui a 30, 50 ou 100 anos, mas pouco ou nada se diz sobre como é a vida laboral nos nossos dias. Não é exagero dizer-se que Yuval Harari, conscientemente ou não, ficou subjugado pela matriz — pelo algoritmo — do seu anterior livro, Homo Deus, e pelo seu tremendo sucesso, com milhões e milhões de leitores. É sintomático que 21 Lições... se apresente não como uma obra inteiramente nova em confronto com as duas anteriores, mas como um prolongamento ou complemento delas, sobretudo de Homo Deus, um apêndice aclarador ditado, como refere o autor, pelas questões com que foi sendo confrontado por leitores, colegas e jornalistas: “O livro foi escrito em conversa com o público.”

Nada disto tem, obviamente, qualquer problema nem suscita reparo, excepto o de concluir-se que é uma obra pouco ou nada original relativamente às precedentes, essas sim de grande originalidade, mesmo que discordássemos das suas teses, que são muitas e muito diversas, expostas a propósito de tudo, absolutamente tudo. Os avisos quanto às ameaças para o liberalismo, para o aumento das desigualdades em termos socioeconómicos, mas também na formação de “castas biológicas” devido ao diferente acesso aos aumentos da esperança de vida para longevidades bíblicas, os alertas para as ameaças ao emprego e para a necessidade de remodelar radicalmente os programas educativos em função da mais do que previsível ausência de “empregos para a vida”, etc. — tudo isso constava já, e em termos mais desenvolvidos, de Homo Deus. Em 21 Lições... há mesmo trechos ou imagens que são reproduzidos de Homo Deus, como acontece, por exemplo, na afirmação, feita na página 105, de que, nos nossos dias, trocamos o bem mais precioso que temos — a nossa informação pessoal — por vídeos engraçados de gatinhos que nos são oferecidos por diversas plataformas digitais, algo que já era dito, e assim mesmo, em Homo Deus, página 380.

A questão não se circunscreve, como é evidente, à repetição da mesma imagem em duas obras sucessivas, mas no esgotamento que se adivinha no arsenal das previsões de Yuval Harari, um autor que, em disputa com outros gurus da modalidade, como o filósofo inglês Timothy Morton, se desdobra em palestras e TED Talks, faz conferências para os futurologistas da Google e dá aulas na Singularity University, em Silicon Valley, produz cursos online e filmes sobre os seus livros, tem um canal próprio no YouTube, publica artigos em jornais como The Guardian, entre outros, ou ensaios em que sumaria as suas ideias; assim, por exemplo, as considerações que tece sobre o poder disruptivo das tecnologias e os nacionalismos, feitas seja em Homo Deus seja em 21 Lições..., estão presentes, sem tirar nem pôr, num artigo longo que publicou na New Statesman em Julho do ano passado, o qual, por sua vez, pouco acrescenta à síntese final extremamente clara — e pedagógica — constante das últimas páginas de Homo Deus, livro que, por seu turno, era prenunciado no final de Sapiens. Eis, pois, um bem arquitectado programa de marketing e relações públicas. Contudo, esta torrente opinativa de Harari desliza, ao menos na aparência, em algumas contradições, como afirmar que o racismo está em declínio e foi substituído pelo “culturalismo” (pág. 181) e, poucas páginas à frente, dizer que as pessoas acreditam que os seus países são o centro do mundo, o que é uma conjugação de “ignorância voluntária da História com uma boa dose de racismo” (pág. 214). Já em Homo Deus, aliás, se escrevia que um pedaço de pão era tudo o que um camponês necessitava para ser feliz (pág. 45) para logo depois se esclarecer que, em todas épocas e lugares, a satisfação das necessidades básicas — a fome, o sexo — é insuficiente para garantir a felicidade humana (pág. 49).

E, no entanto, este livro é importante — ou, melhor, livros como este são importantes. Desde logo, porque constituem uma vulgata muito útil em conversas sociais ou um vade-mécum para oradores e palestrantes da fértil indústria dos seminários e colóquios sobre empreendedorismo, inovação e tecnologias digitais. Mas, acima de tudo, porque condensam numa única obra questões que, importa reconhecê-lo, devem ser abordadas política e civicamente em conjunto, da forma “holística” que o autor propõe, mesmo que por vezes discordemos do alcance das correlações que traça, e julguemos até que são feitas com o mero propósito de cativar auditórios e épater les bourgeois (aliás, o facto de as suas obras se destinarem a um público medianamente letrado dos países desenvolvidos do hemisfério norte compromete substancialmente quaisquer hipóteses de êxito do proselitismo salvífico de Yuval Noah Harari). Dificilmente se encontrará reunida, num só livro, uma quantidade tão díspar de questões, tratadas de forma impecavelmente arrumada e expostas num estilo que, apesar de cansativo nas suas constantes blagues, torna a leitura agradável e fácil, como um thriller intelectual. Se o projecto de Harari é consciencializar os seus leitores para os perigos das tecnologias de informação, tal objectivo foi plenamente conseguido, e através de copiosos e sugestivos exemplos. Nos raros intervalos da sua obsessão argumentativa e opinativa, ou seja, quando nos oferece factos e informações, expostos de forma lúdica e cativante, o livro ganha espessura e interesse. O que diz sobre as tecnologias de informação e a biotecnologia é a parte mais conseguida desta obra, mesmo que pouco ou nada se acrescente relativamente a Homo Deus. Ao abordar, por exemplo, questões como aquilo que a inteligência artificial irá permitir fazer, e já faz, nos mais diversos campos, Harari traça projecções, mas, do mesmo passo, faz importantes alertas para o presente, para um futuro que é agora; nesse aspecto, o livro presta um indiscutível serviço, mesmo que muitos dos seus prognósticos não venham a concretizar-se, como aconteceu a muitas outras antevisões feitas por outros no passado e que jamais se realizaram (veja-se, a este propósito, a notável crítica de Steven Shapin a Homo Deus, na London Review of Books de Julho de 2017). No que diz respeito a outro tema abordado, o da crescente desigualdade na distribuição dos rendimentos e de outros meios materiais e imateriais, Harari comete o erro, compreensível até certo ponto no contexto do seu livro, de a ver tão-somente como um produto dos avanços tecnológicos, sendo o ponto muito mais complexo do que isso, como se pode deduzir da leitura de uma obra de outro quilate, A Desigualdade no Mundo, de Branko Milanovic (Actual Editora, 2017). Ao tratar do terrorismo, Harari, judeu liberal e professor na Universidade Hebraica de Jerusalém, apela a uma abordagem menos alarmista e menos securitária de um fenómeno que, como diz, tem morto um número relativamente reduzido de pessoas, sobretudo se confrontado com flagelos bem mais letais, mas de que menos se fala, como a obesidade ou os acidentes rodoviários. No entanto, e como o próprio também intui, o fulcro do terrorismo não está no número de vítimas, mas no pânico colectivo que suscita, a par dos riscos de surgimento de formas novas e preocupantes de disseminação do terror, como o ciberterrorismo, o terrorismo nuclear e o bioterrorismo, que o autor não deixa de referir, obviamente. Contudo, se estas mais recentes e mais insidiosas modalidades de terrorismo parecem estar ao alcance sobretudo de Estados ou organizações paraestaduais, não é menos certo de que os bandos terroristas “tradicionais”, cuja debilidade Harari certeiramente sublinha, não deixarão de utilizar todos os novos recursos que porventura venham a estar ao seu alcance, pelo que o discurso de 21 Lições... é algo ambíguo ao defender que não devemos entrar em pânico, mas, em simultâneo, ao dizer que devemos estar muito, muito preocupados, como se fosse fácil, ou sequer possível, traçar uma fronteira nítida e discernível — e sobretudo aplicável a milhões de seres humanos — entre pavor emocional e preocupação racional. Outros capítulos, sobre nacionalismo e religião, mereceriam uma severa crítica que não é possível realizar aqui com a profundidade e o desenvolvimento exigidos.

Após fazer um outro apelo grandiloquente — desta feita, à humildade dos homens —, que talvez devesse aplicar a si próprio e à sua verve opinativa, Yuval Noah Harari termina o livro defendendo as culturas pré-modernas e as ferramentas que estas desenvolveram para a auto-observação da mente e para as técnicas de meditação (recomenda a que experimentou pessoalmente em jovem, a Vipassana, “descoberta na antiga Índia por Buda”). “Meditação. Observar, simplesmente”, é o título do último capítulo destas 21 Lições para o Século XXI, que afinal se resumem a uma, a que proclama o poder regenerador da meditação transcendental para o tratamento das inquietações individuais. “Se queremos realmente compreender-nos a nós mesmos, não devemos identificar-nos com a nossa conta de Facebook nem com a narrativa interior do eu. Em vez disso, devemos observar o próprio fluxo do nosso corpo e da nossa mente”, recomenda Harari no seu estilo inconfundível. Não se sabe se, em sua opinião, o antiquíssimo Vipassana e a observação do fluxo corporal e mental se poderão aplicar também, e com resultados comprovados, a males colectivos, ou se esta sua deambulação New Age é apenas um bónus de auto-ajuda com que decidiu brindar os seus mais crédulos leitores, que são muitos (ou não vivêssemos na era das fake news). Em todo caso, é problemático ou questionável um discurso destes feito por alguém que manifesta tão pouca confiança nas capacidades individuais dos seus semelhantes, dizendo que “os seres humanos votam sem pensar”, que “a maioria das pessoas acredita que o mundo gira à volta delas”, que “a maioria dos seres humanos não aprecia factos em excesso”, que “os seres humanos individuais sabem vergonhosamente pouco sobre o mundo, e com o progresso da História foram sabendo cada vez menos”, ou, enfim, que “não só a racionalidade como a individualidade são um mito. Os seres humanos raramente pensam pela sua própria cabeça. Pensamos em grupo”. Então, como se difundirão colectiva e universalmente as virtudes da introspecção meditativa e da observação do fluxo corporal-mental? Por imposição ou sugestão de governos opacos e de duvidosa democraticidade? Através das redes sociais estupidificantes? Graças aos ensinamentos terapêuticos do professor Harari e dos seus livros? Livros que têm confidências autobiográficas no limiar do kitsch: “Durante anos, vivi convencido de que era o dono da minha vida e o CEO da minha própria marca pessoal — afinal, mal era o seu porteiro.”

O que se oferece dizer, em poucas palavras, é que Yuval Harari se mostra um crente não praticante do “observar, simplesmente”, já que nos últimos anos não só não se tem limitado a contemplar o mundo, como sobre ele fala e discorre a uma cadência alucinante. Harari piora o seu caso, pois defende as virtudes redentoras da pré-modernidade mística e da Índia antiga, mas, ao mesmo tempo, como sucede nesta entrevista ao Ípsilon, fustiga os políticos por estarem mais preocupados em venderem-nos “fantasias nostálgicas sobre o passado do que em preparar-nos para o futuro”. É com a meditação Vipassana que a humanidade criará milhões de empregos, exterminará a desigualdade crescente ou vencerá o aquecimento global e os novos terrorismos? Não se sabe, nem o autor esclarece.

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