Lily Allen recuperou o controlo sobre a vida e as canções

Depois de se ter entregado àquilo que a indústria de si esperava em Sheezus, recuperou o controlo sobre a sua música sem medo de ser confessional. Excelente regresso de uma das mais importantes criadoras pop de hoje.

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Há meia dúzia de anos, quando a cantora pop inglesa Lily Allen pôs fim a uma reforma antecipada e centrou a sua vida na composição do terceiro álbum, Sheezus, deu por si entregue a preocupações que não lhe eram habituais. Sabia que estava a germinar um disco para chegar à poderosa e influente playlist da Radio 1, a dar vida a um conjunto de temas que iria funcionar sem problemas na televisão e noutros ecrãs de dimensão variável, a investir em canções com o potencial de lhe trazer generosos contratos publicitários que lhe tornassem os dias mais desafogados e livres de inquietações ao fim do mês. “Estava mais a pensar nas oportunidades de negócio que a música me podia trazer do que numa ligação emocional [com as canções]”, confessa ao Ípsilon. “E depois, mais tarde, senti que era tudo muito vazio.”

Desde então, provando que nunca teve realmente perfil para estrela pop bem comportada nem feitio para evitar meter o pescoço na boca do leão, Lily Allen tem falado do desconforto que Sheezus (2014) lhe provoca. Não tanto pelos temas que juntou nesse álbum, mas sobretudo pela cedência em termos de universo visual – em aberta contradição, de facto, com o discurso de lâmina afiada que sempre lhe conhecemos nas letras. Mesmo apregoando em Hard out here que quem não detecte o sarcasmo quando Lily adopta os lugares comuns da pop está a passar ao lado das suas intenções, a verdade é que aceitou e procurou jogar o jogo da indústria.

Quer isto dizer que cantar “I suppose I should tell you / What this bitch is thinking / You’ll find me in the studio / And not in the kitchen / I won’t be bragging ‘bout my cars / Or talking ‘bout my chains / Don’t need to shake my ass for you / ‘Cause I’ve got a brain” só funciona em pleno se depois não se fotografar numa capa que, mesmo parodiando as manifestações de megalomania e narcisismo patológicos (a cantora faz-se acompanhar por um par de cães de modesto porte no lugar dos leões ou tigres que seriam a escolha natural para tal espalhafato visual), não deixa de fazer “bling” aos ouvidos; e só é realmente eficaz quando a pouco subtil ironia do vídeo de Hard out here, em que começa numa mesa de operações a preparar o corpo para se juntar aos pouco tapados quadriz das bailarinas que a acompanham num cenário dourado e abanam os rabos como se o seu pagamento dependesse disso, não se confunde com o objecto que ridiculariza.

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Com No Shame Lily Allen parece ter voltado à frente de batalha e a mostrar-se carta saudavelmente fora do baralho

Já sabemos que esta natureza sardónica a que Lily Allen não consegue escapar é pouco compatível com o estrelato pop para que foi atirada com Smile (já então uma irresistível canção, dedicada ao tão humano – mas tão pouco confessável –  sentimento vingativo de retirar prazer do sofrimento infligido a um ex-namorado que tenta voltar atrás no término da relação). Daí que esta tentativa de se submeter às regras da indústria, capazes de a fazer vomitar de tão aberto que é o conflito que com elas mantém, se tenha tornado demasiado visível. E fazendo pontaria a um alvo para o qual não tinha a mira calibrada, Lily Allen sente que foi desmascarada pelo público com a edição de Sheezus. “Acho que como toda a gente sempre me viu como sendo muito honesta e directa, as pessoas perceberam que naquela altura eu não era real e perderam interesse em mim”, reflecte hoje.

Com esse falhanço em se confirmar como “a estrela pop” veio “um período muito difícil”. “Havia muitas coisas a passar-se à volta da música e o meu comportamento, ao afundar-me em álcool e drogas teve também que ver com tudo isso que tinha projectado não ter acontecido.” O mal-estar com Sheezus, reconhece, prende-se igulamente com a memória desses momentos pouco felizes. “A música tem muitas vezes essa qualidade de representar a época em que primeiro ouvimos ou escrevemos uma canção. E para mim esse é um período a que não gosto de voltar.”

O novo No Shame é, por isso, uma marcha-atrás depois de Sheezus. É um álbum em que Lily Allen está recentrada e de volta a uma honestidade que silenciou de vez as vozes “daquilo que toda a gente queria que fosse – com o sucesso há muitas expectativas em nosso redor, todos ficam muito entusiasmados e a esfregar as mãos a pensar no dinheiro que podem ganhar”. “Sentia que estava a representar uma personagem. E então tive de tomar a decisão: quero tocar na rádio e fazer dinheiro ou fazer algo que me dá verdadeiro prazer? Escolhi ter prazer naquilo que faço. A outra abordagem não estava a funcionar comigo.” A primeira medida higiénica para pôr em prática esse regresso a uma maior honestidade criativa passou, em 2015, por um mês de residência em Los Angeles, de onde saíram temas como Family man e Trigger bang.

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Curto-circuito no mainstream

Não é fácil encontrar canção mais respeitadora do tom confessional que nos habituámos a admirar em Lily Allen. Family man, tema que a cantora assume ter-se tornado “central no álbum e na sua sonoridade”, não faz por esconder a fragilidade total que então tomava do seu casamento – que, entretanto, colapsou por inteiro. Ouvimos Lily retratar-se como young and stupid, wild and ruthless, confessar-se egoísta e cansada, e alegar que está a fazer o seu melhor enquanto roga para não ser deixada. Foi a primeira semente de um álbum em que lutava com uma perda crítica de confiança e auto-estima. Agora, teme que o público possa ficar desapontado por não encontrar “a atitude divertida e exuberante” que acredita ser procurada nas suas canções.

Não há em Lily Allen uma centelha de receio de se ver prisioneira desse tom privado e confessional que se tornou uma marca identitária fortíssima na sua música. E não há receio disso porque, simplesmente, Allen não sabe fazer de outra maneira – mesmo nas tais cedências em Sheezus. No Shame é sobretudo um álbum em que Lily Allen se propõe ganhar controlo sobre a sua obra – ao escolher não reincidir no produtor Greg Kurstin e centrar as decisões de produção em si e numa equipa variável de colaboradores como Mark Ronson, Fryars ou Ezra Koenig –, ao mesmo tempo que reivindica algum controlo sobre a narrativa da sua vida.

Essa é a primeira conclusão que se tira ao escutar o óptimo No Shame. O arranque com Come on then é um desafio a todas as ideias pré-feitas sobre a sua privacidade, sobre as assunções acerca das suas falhas enquanto mãe e mulher, só porque há notícia disso espalhada pelas milhentas esquinas da internet. E em que Lily pergunta: se há assim tanta gente que a conhece, pronta a prestar declarações sobre a sua intimidade, por que raio se sente tão sozinha e o seu telefone nunca toca? É uma revolta biliar contra o escrutínio de cada gesto seu a partir do momento em que passa o umbral da porta, entregue com o seu registo cândido-juvenil e as melodias certeiras que a inscrevem sem dúvida no panteão pop e curto-circuitam os códigos mainstream.

Come on then é o início perfeito, à altura do patamar elevadíssimo da obra-prima pop que foi, em 2009, It´s Not Me, It’s You, o pináculo da sua discografia até agora. E ainda melhora quando No Shame passa para Trigger bang, seríssima candidata a mais viciante canção de 2018. É, mais uma vez, uma janela para parte da vida de Lily Allen contada até ao limite daquilo que está disposta a expor: a falta de culpa e de vergonha dos seus anos de adolescência e jovem adulta – “I would wake up next to strangers / everyone knows what cocaine does / numbing the pain when the shame comes”.

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Há muito da ruína conjugal de Lily Allen a infiltrar-se nas letras de No Shame, mas a vida familiar surge também sob a forma da culpa que se apodera dela enquanto mãe obrigada a partir em digressão a toda a hora, repetindo pequenos abandonos das suas crias. Three, escrito a partir do olhar de uma criança de três anos, equivale a várias facadinhas no seu coração maternal e a uma confissão de dolorosa sensação de falhanço. Mas é também mais uma lupa apontada à condição feminina que, sob várias formas – desde a recusa de subjugação a uma sociedade patriarcal à abordagem despudorada do sexo e à crítica continuada à objectificação da mulher –, tem pontuado a escrita de Allen.

Ao contrário do que se possa imaginar, no entanto, Lily Allen não acredita que a cultura pop seja hoje mais permeável a um discurso igualitário ou feminista. “Acho até que está a ficar pior para as mulheres”, diz-nos. “Parece-me que o intervalo está a ficar cada vez mais estreito. Numa época em que os músicos só conseguem realmente sobreviver através dos patrocínios que conseguem junto de grandes marcas, está tudo a tornar-se mais complicado. Quando se começou a ouvir música na internet houve uma janela de oportunidade para se ser mais expressivo.” Isso acabou, defende, e agora a música pop homogeneizou-se a um ponto preocupante. Com o recente anúncio de que as visualizações do YouTube passaram a ser contabilizadas nas tabelas de vendas do Reino Unido, Lily Allen receia que isso signifique apenas um acréscimo de “jovens raparigas com menos roupas e mais sexo”. “É isso que acontece quando se junta música e imagem no que toca às mulheres.”

Tudo se tornou demasiado “vanilla”, diz, no sentido da monotonia. A lei, portanto, é a da monotonia e do sensacionalismo. Felizmente, com No Shame Lily Allen parece ter voltado à frente de batalha e a mostrar-se carta saudavelmente fora do baralho.

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