Uma verdade que não existe, mas que ainda assim se persegue

Emigração, identidade, memória, transgénero. O romance de estreia de Sasha Marianna Salzmann é a ficção autobiográfica de uma russa com passaporte alemão que chama casa a Istambul. Fora de Si é a inquietante procura de uma verdade que não existe, mas que ainda assim se persegue.

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Sasha Marianna Salzmann, dramaturga, contista, alemã de origem russa, filha de uma família judia que fugiu do socialismo soviético nos anos 1980 Esra Rotthoff

Anton não sabe a verdade acerca de si mesmo: quem é, a que país pertence, que língua é a sua. Não tem certezas acerca de si próprio, a não ser que é gémeo de Álissa, Áli, e até isso é inquietante. Por tudo isso foge. “Queria estar num sítio onde não soubesse de nada, não entendesse nada, não conhecesse a língua, e onde os poucos amigos que falassem a minha língua ficassem calados. O dinheiro deu para chegar a Istambul.” Quis desaparecer, não avisou ninguém, também se transformou em silêncio, até que um dia enviou um postal à família com uma única palavra: Istambul. 

A fuga de Anton desencadeia a acção da história. Ao saber do postal, Áli apanha um avião e vai até Istambul. Ela será a verdadeira protagonista, transformando a viagem da procura por Anton numa desesperada busca de identidade e tentativa de recuperação — ou construção — de memória. 

Este é o centro de Fora de Si, romance de estreia de Sasha Marianna Salzmann, dramaturga, contista, autora residente do teatro Máximo Górki, em Berlim, alemã de origem russa, nascida em Volgogrado em 1985, filha de uma família judia que fugiu do socialismo soviético nos anos 1980. É uma identidade próxima da relatada neste livro. Ou seja, estamos diante de uma autobiografia com ficção. “O meu romance é o que os críticos designam de ‘ficção autobiográfica’. Isso significa que parto de pontos-chave da minha biografia e transformo-os em âncoras do livro. O resto é ficcionado”, conta ao Ípsilon a partir de Berlim, onde vive, esclarecendo que a sua experiência de 12 anos a escrever para teatro lhe ensinou que tudo será lido como a sua história pessoal. Por isso decidiu arriscar tudo. Isto é, o jogo com o leitor é também acerca da própria identidade da autora. 

Onde está Sasha quando lemos sobre Áli ou Anton? Eles são um par de gémeos que parecem metamorfosear-se, que parecem ser por vezes um só, física e intimamente, um o complemento e a incompletude do outro, hermafroditas, a quem falta, no entanto, muita coisa. Repete-se: onde está Sasha? “É divertido”, diz Sasha. “O retrato de família que traço não é o retrato da minha família, mas quis brincar com essa ilusão.”

Fora de Si trata temas tão actuais como a emigração, a identidade, a questão transgénero, a tomada do poder pela força ou o desenraizamento. E fá-lo a partir da diáspora judaica, porque é essa que Salzmann melhor conhece. Áli e Anton são vistos como judeus na Rússia e como emigrantes na Alemanha, não sabem o que é pertencer a um país e cresceram com várias línguas. A autora leva essa Babel para o livro, transcrevendo expressões ou frases em russo, iídiche, alemão, turco, aumentando o sentido de perdição das personagens através da profusão de recursos linguísticos, óptimos auxiliares de caracterização, num texto que por vezes assume o papel de ensaio acerca da intimidade com a língua.

“Por princípio, desconfio da minha língua materna. Por ser tão melhor do que o mundo de onde vem, mais florida e eloquente do que a realidade”, pensa Áli. E Sasha?

Uma família, cem anos

Sasha conta que escreve em alemão, que apesar de o russo ser a sua língua materna neste momento é o alemão que influencia o seu russo. “Poder continuar a ler literatura russa no original é um privilégio tremendo. Mas isso não influencia a minha escrita. Mas estou certa de que estar distante da minha língua materna me torna mais crítica acerca das outras línguas que falo. Para um escritor, isso é fantástico. Olho sempre para uma língua a partir de uma perspectiva de fora, e a decisão acerca de uma palavra ou da estrutura de uma frase resulta de um debate comigo mesma. Tudo parece possível, mas nada me é dado como certo. Isso é muito estimulante”, afirma Sasha, que, no que respeita a nacionalidades, se define como judia de língua russa, com passaporte alemão “e a cidade” a que chama “casa é Istambul”. 

Em Fora de Si entramos em Istambul em 2015 e é a partir desse momento que a estrutura do romance ganha forma. Espaço e tempo encadeiam-se, com a cidade a transformar-se em “placa giratória” — expressão da autora — da qual se salta para a Ucrânia cem anos antes e depois até à vida dos protagonistas na Alemanha, e um pouco pelo resto da Europa, até chegar outra vez à Turquia. “Quis mostrar como estamos todos ligados. As famílias foram migrando ao longo dos séculos tantas vezes. Os nossos caminhos são caminhos partilhados. A migração é uma trança construída por todos nós, transnacional, transgeracional”, resume Sasha, acerca deste livro que, bem no princípio, não era para ser assim.  

“No princípio pensei que ia escrever sobre os protestos da Praça Gezi, em 2013 [contra o Governo de Erdogan]. Eu vivia na Turquia e estive nas lutas de rua. Essa experiência foi tão marcante que achei que tinha de escrever sobre ela. Quando voltei a Istambul em 2016 e me pus a escrever, percebi que aquele material me estava a levar para outros lugares onde não planeara ir”, como Odessa, e para personagens que não conhecia. Foi assim que começou a viagem e nasceram Áli e Anton.

“Eles existiam de alguma forma em mim. Conhecia-os, vi-os crescer, eram como amigos de infância e contaram-me muitas coisas do seu mundo interior durante os dois anos de escrita. No início havia Áli, sabia que era alguém entre uma rapariga e um rapaz e que procurava desesperadamente o irmão gémeo. Nessa altura nem sabia se ele existia realmente ou se era uma ilusão de Áli, alguém que a ajudasse a atingir qualquer coisa, uma esperança, um salvador imaginário.” 

Nessa incerteza, o livro cresceu e foi ganhando estrutura. Há uma primeira pessoa hesitante. “Era claro para mim que o eu narrador teria de aparecer devagar, como que vindo de uma névoa. Queria que a história parecesse a típica narrativa sobre uma pessoa que sai à procura de uma ‘verdade’ — a clássica heroína de qualquer história, de qualquer filme. Mas ela abandona esse caminho e ao ler os outros narradores torna-se fluente [na sua própria voz, na sua própria linguagem]. E a terceira pessoa não é mais do que a primeira camada para entrar na história”, que se revela ao leitor na forma como foi escrita.

Sasha conta: “Eu estava à procura de respostas, sabendo que não haveria nenhuma. Eu sabia: a minha história iria por espirais porque os protagonistas estão a correr em círculos, a ir por caminhos errados. Estão sempre a perder-se um do outro, mas irão procurar um pelo outro para sempre. Em tempos diferentes, em cidades diferentes.” E a história roda em três direcções distintas, países diferentes num período de cem anos até ao presente; um período que é apresentado com avanços e recuos à medida que cada elemento da família surge e olha para outro elemento dessa família, numa ambiciosa procura de diversidade de perspectivas. 

Ser senhor da sua história

Nesse processo, a memória desempenha um papel crucial. Sasha diz mesmo que é o tema principal do romance. “A certa altura percebi que o meu livro não era a história de uma família através de quatro gerações, mas um livro acerca de como cada um quer ser o senhor da sua história. Para que Áli, a protagonista, pudesse entender a razão pela qual é assim no presente, precisou de descobrir o que era antes a sua família e aquilo que transportava nos ossos. Só que isso é impossível de descobrir. Tudo o que ela tem são memórias de pais e de avós e de bisavós, e a memória é coisa fluida, que anda em círculos e se reescreve a si mesma. É apenas uma improvisação do que poderia ter sido. Por isso ninguém nos pode dizer o que aconteceu exactamente; tudo o que temos é um recontar e uma tentativa de lembrar.”

Áli lembra-se, por exemplo, de que não pôde levar brinquedos na viagem de fuga de Moscovo para a Alemanha, mas pôde levar livros. E lembra também a náusea no comboio. Sasha vê as suas fotografias na Rússia e duvida das suas próprias memórias acerca daquele lugar, e como há muito que não vai lá, tudo fica ainda mais difuso. Esse carácter etéreo atravessa o livro, contamina-o ao ponto de o espelho ser o recurso para ter uma imagem clara. Do rosto, por exemplo. Áli olha-se no espelho e vê Anton ao ver-se. Em Istambul, à procura de Anton, o tio de Áli aponta o rosto dela ao amigo polícia e diz que Anton é igual, “caracóis castanhos e curtos, que ela não penteava e que ficavam embaraçados nas pontas, erguendo-se no ar como o vértice de um triângulo, a pele fina e com um brilho azulado sob os olhos redondos, os braços pendendo...”. Não muito diferente das fotografias que se conhecem de Sasha Marianna Salzmann, que construiu em Fora de Sim um livro de uma intimidade desconcertante e tremendamente político. Desde as passagens sobre o diferente modo como se ensinava o amor a um rapaz ou a uma rapariga na URSS, aos confrontos na principal praça de Istambul, à transformação dos corpos em masculino ou feminino.

“A arte é completamente diferente da política no modo como organiza as suas demonstrações ou constrói os seus discursos. É um organismo próprio, não pertence a causas políticas. Mas não acredito em arte não política. Penso que alguém que toma a decisão de escrever qualquer coisa não política já está a tomar uma decisão política. Se se está a escrever para uma audiência, está-se a dizer alguma coisa das nossas opiniões acerca do mundo. Nisso temos duas opções: podemos ser os donos da nossa própria criação e traçar conscientemente uma certa posição acerca desse mundo — o que em si é um gesto político — ou podemos fingir não nos importarmos e fazemos apenas o que fazemos e serão os outros que nos dizem de que modo o nosso trabalho reflecte a sociedade em que vivemos.” 

Sasha escolheu a primeira opção e nessa escolha não houve cedências para conquistar leitores, e qualquer reflexo, num espelho hipotético, é incómodo. É um caminho com “armadilhas”, para recorrer a uma palavra retirada da epígrafe, uma citação de James Baldwin em No Name in the Street, que refere “a armadilha do nosso século”. Era o século XX e ecoa no XXI aqui escrito por Salzmann, inspirada, além de Baldwin, em Junot Diaz, Ingeborg Bachman, Joseph Brodsky, Roberto Bolaño, Aglaja Veteraniy.

“Eles são para mim como família, ensinaram-me a verdade subjectiva dos tempos em que viveram e isso ajudou-me a entender as minhas personagens e o meu próprio sentimento de perdição no espaço e no tempo. Eles são espelhos, ao partilharem as suas verdades subjectivas encorajam-nos a prosseguir”, refere a escritora de 33 anos, faltando-lhe nomear um desses “familiares” para dizer o que quer da escrita: “Leonard Cohen disse: a poesia não é um lugar para conquistar. Se for generosa connosco, deixa-te entrar por algum tempo até te expulsar outra vez. O meu objectivo [como escritora] é ficar nesse lugar o mais tempo que puder. É um lugar bonito, o melhor que conheço.”

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