Shabaka quer lembrar as Caraíbas e tombar os mitos

Esta sexta-feira, Shabaka Hutchings leva os seus Sons of Kemet ao Festival Músicas do Mundo. Músico fundamental na cena londrina que injectou punk e música arábicas no vocabulário jazzístico, traz no sopro do saxofone as suas dez rainhas pessoais.

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Pierrick Guidou

Quando Shabaka Hutchings perdeu a vergonha e se estreou em disco com um dos seus projectos enquanto líder, os Sons of Kemet, em 2013, era já perceptível para os mais atentos que o seu nome insistia em vir à tona sempre que se espreitava para algum dos grupos definidores de uma nova cena jazzística britânica. Passados sete anos, só uma muito indesculpável desatenção pode fazer com que alguém interessado na produção do jazz contemporâneo possa ignorá-lo. Nascido em Londres mas tendo passado dez anos (entre os seis e os dezasseis) em Barbados, ao regressar a Inglaterra na adolescência Shabaka não demorou a perceber o seu lugar num meio com tantas possibilidades musicais que a definição de uma identidade pode tomar a forma de um monstruoso quebra-cabeças – para quem não seja prisioneiro de um interesse muito particular em determinada estética.

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Nascido em Londres mas tendo passado dez anos (entre os 6 e os 16) em Barbados, ao regressar a Inglaterra Shabaka não demorou a perceber o seu lugar num meio com tantas possibilidades musicais Pierrick Guidou

Shabaka não esconde que o seu percurso poderia ter sido muito diferente se não tivesse encontrado em Soweto Kinch um farol essencial no reencontro com Londres. “O Soweto foi uma das primeiras pessoas que conheci – ele estava a dirigir uma jam session semanal e foi aí que comecei a ouvi-lo tocar jazz”, recorda o saxofonista ao Ípsilon. “Ia vê-lo todos os domingos, ia a casa dele e pedia discos emprestados.” Quando restituia os empréstimos os dois discutiam a música daqueles discos e o que esta lhes poderia oferecer. Soweto tinha já na sua biografia um factor de aproximação instantâneo – o seu pai é de Barbados – mas havia de mostrar a Shabaka como o jazz era uma música de natureza porosa e flexível, algo que, no seu caso, se manifestou numa assimilação fortíssima do hip-hop e do grime, com Soweto a não deixar o saxofone no descanso para também ser rapper. Quando, aos poucos, Shabaka conquistou o direito a participar nas tais jam sessions, sabia já que lhe era permitido levar todo e qualquer background para cima do palco.

Ao arriscar formar um grupo que claramente explorasse as suas raízes caribenhas, Shabaka colocava em prática esse ensinamento precioso de Soweto Kinch. Mas juntava um outro, também fundamental, paralelo ao nascimento oficial dos Sons of Kemet – que actuam esta sexta-feira, no Castelo de Sines, integrados na programação do Festival Músicas do Mundo. Nessa altura, no início desta década, Hutchings era já uma figura cuja presença, com variáveis graus de envolvimento, nas formações fundamentais à ignição de uma nova cena no jazz britânico era fácil de identificar. Não é como procurar Wally numa multidão; Shabaka é fácil de encontrar como tomando parte ou estando na esfera de proximidade de projectos como Melt Yourself Down, Polar Bear ou Acoustic Ladyland, todos eles no epicentro desta linguagem marcada pela adopção despudorada de um vigor rock – quando não punk – e pela permeabilidade a sonoridades colhidas em geografias mais distantes.

“Acho que esse é um dos elementos que diferencia o jazz britânico do jazz oriundo de outros lugares, nomeadamente dos Estados Unidos”, compara Shabaka em conversa com o Ípsilon. “Há um tipo de energia nascido no período punk que foi infundido na música que nós fazemos.” O punk não se esfumou, portanto, antes encontrou outro corpo para possuir e com uma carga menos autodestrutiva. Essa foi, aliás, uma das características mais cativantes que Shabaka descobriu em Pete Wareham, o homem que comanda os Melt Yourself Down e empresta também o saxofone aos Polar Bear. “A energia que ele coloca na forma como toca, independentemente do contexto, é algo que vem dessa era e é com certeza algo que me influenciou e que sei que influenciou muitas outras pessoas da cena. Até porque acredito que essa atitude punk não tem de ser necessariamente transmitida no seu género de origem ou com uma guitarra nas mãos.”

Ao juntar-se a Wareham nos Melt Yourself Down, aprendeu a ligar-se a essa corrente. Mas também a perceber como Wareham punha em prática algo que viria a ser extremamente útil a Shabaka na criação dos Sons of Kemet – os Melt Yourself Down apresentavam-se como “música de festa punk inspirada pela região de Núbia”, encharcando de sonoridades egípcias e sudanesas o seu jazz. Não é fácil imaginar música mais incendiária cuspida por saxofones. E seria quase impossível alguém cujo perfil melhor se adequasse a acompanhar Wareham nesta aventura: o Shabaka original foi um faraó egípcio, o último de origem núbia a governar o Egipto. É daí que vem o nome do músico.

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A rainha reptilínea

O Egipto resvalou também para a criação dos Sons of Kemet. Kemet é a anterior designação para o território egípcio. Shabaka tinha a cabeça ocupada com várias leituras sobre o kemetismo – corrente revivalista da religião e da cultura do Antigo Egipto – e sobre a sua relação com a filosofia grega clássica quando decidiu que estava na altura levar um projecto da sua autoria para a sala de partos. Imbuído desta ideia de que “um sistema que damos por adquirido como sendo predominantemente europeu possa ter ligações a esta antiga escola de pensamento egípcia”, viu nisso um sinal de que a sua música deveria subscrever uma filosofia semelhante.

“Aquilo que tinha em mente para os Sons os Kemet”, confessa Shabaka, “não era um imaginário ou uma sonoridade específica; era mais uma expectativa. Queria tocar música que reflectisse parte do meu crescimento caribenho, através da música que ouvia quando era mais novo, mas que também pudesse ligar-se com o tipo de improvisação livre ou processos exploratórios que estudei em Londres.” Basta ouvir o arranque do disco de estreia, Burn (2013), para perceber como All will surely burn, The godfather ou Going home respondiam de forma assertiva a este desígnio, através da combustão rítmica e do cardápio melódico. Chegar aí foi simples: Shabaka teve um convite para tocar num pequeno bar em Londres, chamou alguns músicos (uma tuba e duas baterias) que queria experimentar ouvir juntos, compôs uma mão-cheia de temas e, à medida que os concertos se foram repetindo (cada vez com mais público), “o sentimento da música que tinha escrito começou a fundir-se com aquilo que os outros músicos traziam”.

A partir desse momento, os Sons of Kemet tornaram-se uma entidade viva e Shabaka continuou a compor a partir das possibilidades que a banda lhe sugeria a cada novo passo. De forma gradual, a sua criatividade foi entretanto encontrando outras válvulas de escape no perfil mais electrónico e rock dos Comet Is Coming e no afro-futurismo via Sun Ra que anima os Shabaka and the Ancestors. Os Sons of Kemet, no entanto, mantêm esta ligação primordial à música que o saxofonista afirma ser o seu “centro”. E esse centro está nas Caraíbas.

Ao FMM, os Sons of Kemet trazem o novo Your Queen Is a Reptile, lançado pela histórica editora norte-americana Impulse! – casa que associamos a John Coltrane, Pharoah Sanders, Charles Mingus ou Sonny Rollins, renascida nos últimos anos com a missão de ser a cara do jazz contemporâneo. “Estar na Impulse! situa-nos numa certa trajectória da História do jazz”, reconhece Hutchings. “Mas para mim não é o meu grupo que faz parte da família da Impulse! O que conta é que o legado da Impulse! se estende além-mar para integrar a História do jazz britânico. Nesse sentido, os Sons os Kemet não são um grupo, mas talvez a manifestação de vários anos em que muitos músicos de jazz britânicos tentaram ideias diferentes e formularam uma música diferente do jazz americano. O reconhecimento que possamos vir a ter nasce por estarmos aos ombros dos músicos dos Polar Bear, Acoustic Ladyland e até Courtney Pine.”

É impossível não ler Your Queen Is a Reptile como um comentário ácido sobre a monarquia inglesa. Shabaka Hutchings quis pegar numa leitura de Sun Ra acerca de “como os indivíduos e as sociedades procuram o poder de construir as suas próprias mitologias”, tendo prosseguido por esse caminho até “identificar alguns mitos com os quais vivemos, sem a consciência de serem mitos”. “E, para mim, o facto de algumas pessoas nascerem com um direito imediato a liderar é um dos maiores mitos que temos entre nós e que damos por adquirido”, esclarece, apontando a uma monarquia hereditária que se sobrepõe àquilo que será o interesse público numa liderança. Ao chamar-lhe mito, acredita, está a nivelar a realeza com qualquer história mirabolante que possa envolver répteis predestinados a feitos ciclópicos.

Em vez da rainha Isabel, o álbum presta homenagem às dez rainhas pessoais de Shabaka, da activista anti-apartheid Albertina Sisulu e da autora feminista afro-americana Anna Julia Cooper à filósofa e activista Angela Davis ou à sua própria avó Ada Eastman. Dez inspirações que, rodeadas de jazz, grime, reggae e música caribenhas, querem estender essa visão pessoal do mundo para quem a possa querer agarrar. Esta sexta-feira, não faltarão certamente candidatos.

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