“Portugal ainda resiste a olhar para o seu passado de forma desassombrada e crítica”

Os investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Miguel Cardina e Bruno Sena Martins, organizaram o livro As Voltas do Passado, que reúne um conjunto de textos sobre o último fôlego do passado colonial português.

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Adriano Miranda

O pretexto para a publicação do livro As Voltas do Passado é o CROME, o projecto do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação, que procura compreender como se foram reconfigurando as memória das guerras, desde a independência dos vários países até à actualidade. O subtítulo da publicação, A Guerra Colonial e as Lutas de Libertação, traduz essa tentativa de tratar “diferentes processos de memorialização”, tanto provenientes de Portugal como das ex-colónias. O resultado acaba por ser um mosaico de vozes, de geografias e de gerações, com o colonialismo português como pano de fundo.

No livro, lançado recentemente pela Tinta da China, cabem os momentos cuja importância é mais frequentemente reconhecida na história, como o discurso de Salazar que marcou o início da guerra, em 1961, o 25 de Abril de 1974 ou as independências após a revolução. Mas cabem também episódios menos conhecidos: desde a vida a bordo Vera Cruz, o paquete que transportava tropas a partir da metrópole, às páginas mais negras do domínio português em África, ilustradas pelos massacres de Batepá (São Tomé e Príncipe), Pidjiguiti (Guiné), Mueda e Wiriamu (Moçambique).

O cruzamento de memórias, afirmam os coordenadores da obra que reúne textos de mais de 40 autores, Bruno Sena Martins, doutorado em sociologia, e Miguel Cardina, doutorado em história e coordenador do CROME, “dá-nos um outro olhar sobre esse passado”. Defendem também que essa polifonia ajuda a explicar parte da organização social do país actual.

Falam de um “longo apagamento da guerra colonial no espaço público”. Por que é que aconteceu?
Bruno Sena Martins — Isto no contexto português. Se nos países que nasceram das independências a guerra é vista como um momento fundador da nação, em Portugal tem um lugar de difícil inscrição. Representa um momento de violência colonial, não apenas daqueles 13 anos de guerra, mas de toda a história portuguesa imperial, marcada pela violência da escravatura, da opressão colonial. Uma identidade portuguesa que celebra os descobrimentos, uma ideia de um colonialismo especial, muito luso-tropicalista, de convívio com os povos, tem dificuldade em inscrever esta narrativa. Uma outra dimensão do silenciamento sobre a guerra colonial é que o regime que resulta do 25 de Abril teve a participação activa dos militares que participaram na guerra colonial. Qualquer guerra tem momentos de violência, traumáticos, de massacres de populações, que criam uma espécie de tabu.

Miguel Cardina — Faz com que a figura do militar seja paradoxal. É o herói da democracia e é quem faz a guerra. O facto de o 25 de Abril ter sido feito por militares e o próprio processo histórico que inaugura significar o desfecho da guerra, transforma-o num evento do passado sobre o qual não seria muito interessante falar. Há também na sociedade em geral uma falta de vontade em ouvir aquelas pessoas. Eu fazia no outro dia uma entrevista a um ex-combatente e ele dizia que só começou a falar da guerra no final dos anos 90. Por que é que acontecia? “Eu não falava porque acho que ninguém me queria ouvir sobre o assunto.”

A demora em abrir a discussão contribuiu para prolongar a ideia luso-tropicalista do “bom colonizador”?
MC — Certamente. Diria que essa ideia ainda é prevalecente e dominante.
 

BSM — Temos a experiência de ir às escolas e percebemos quer pelos currículos, quer pela concepção que alguns professores acabam por reproduzir, que a ideia de um colonialismo benigno ainda tem uma força muito estabelecida. Muitas das discussões que temos tido recentemente, seja acerca do Museu das Descobertas, seja o facto de termos um Portugal dos Pequenitos que celebra o mundo luso-afro-brasileiro criado por Portugal, são [apenas] possíveis numa sociedade constituída sobre uma olímpica desmemória em relação à violência colonial.

Ao mesmo tempo, diz-se no livro que se está a abrir um espaço para essa discussão. Porquê agora?
MC — Há um tempo que passou e que começa agora a ser observado com um olhar crítico, distanciado e reflexivo. Por outro lado, há o surgimento de projectos como o nosso e há a articulação disso com uma crítica a este olhar ainda luso-tropical vinda de sectores dos movimentos sociais, ligados ao anti-racismo. Isso faz com que estejamos hoje a viver um período particularmente interessante de questionamento das imagens dominantes em relação ao passado colonial. Não entendo que sejam ainda essas as leituras hegemónicas na sociedade. Mas acho que, apesar de tudo, têm existido vozes, como foi o caso da Djass (Associação de Afrodescentes) para a construção do monumento à escravatura, todo o debate sobre o Museu da Interculturalidade, da Viagem, dos Descobrimentos...

A discussão sobre o nome [do museu] mostra que há um olhar mais crítico?
MC — Sobretudo mostra o atraso dessa discussão, porque ainda nem sequer conseguimos nomear o que aconteceu. Estamos num momento interessante e importante. O nosso trabalho é sobre a memória da guerra e da luta, mas também se articula com estas questões mais amplas sobre os passados coloniais.
 

BSM — A presença do tema da guerra colonial crescente no espaço público não implica uma leitura que consideramos crítica. Muitas vezes essa presença vem sob a forma de nostalgia imperial. Muita da literatura que ganhou alguma projecção sobre a guerra tinha um pendor nostálgico ou melancólico de perda em relação à vivência em África. Mesmo as memórias dos combatentes são paradoxais. Não esquecer que, para essas pessoas, o tempo da guerra corresponde à juventude. Mais recentemente, tem surgido uma perspectiva que permite pensar o que é que a guerra representou para Portugal e qual a relação que tem com as desigualdades que são ainda marcadamente baseadas na questão da raça.

Os episódios do livro ajudam a explicar problemas como o racismo ou a menor integração das comunidades de afro-descendentes do Portugal actual?
BSM — Absolutamente. Para nós entendermos o lugar que as comunidades afro-descendentes têm em Portugal temos, sem dúvida, que retornar à guerra colonial e perceber em que medida alguns processos migratórios foram até incentivados — claramente no caso de Cabo Verde — como uma forma de romper o tecido social que se estava a levantar contra a guerra. Devemos entender que essas pessoas que vieram para Portugal nunca foram vistas a partir desta história tensa do colonialismo. Isto fez com que o nexo colonial racista que criou Portugal enquanto nação imperial — e que continua a existir na nação pós-imperial — nunca tenha sido suficientemente debatido e discutido. Trazer a guerra é trazer um tempo da violência colonial que, num certo limite, permanece até hoje sob a forma de violência racista, de exclusão social e de desigualdade que afecta desproporcionadamente as pessoas negras.

Porque é que esse nexo nunca foi debatido?
BSM — Por um lado, pela força da narrativa luso-tropicalista. A ideia de Portugal enquanto nação que praticou um colonialismo afável e que tem, em relação às populações negras que habitam o seu território, uma posição de abertura, de hospitalidade e receptividade, fez escola. Mesmo as comunidades que foram sendo afectadas por processos de racialização ou exclusão não tiveram a capacidade de se constituir enquanto protagonista político. Foi preciso algum tempo, mas isso está a acontecer recentemente, o que tem também a ver com tendências internacionais. Muitas das lutas das pessoas que vieram das ex-colónias eram lutas pela integração, pela sobrevivência e esta dimensão política apareceu sempre de uma forma embrionária, não suficientemente capaz de se impor como uma agenda política.

O facto de estar a acontecer agora é mais pela tendência internacional ou por pressão de movimentos no país?
MC — É difícil de distinguir. Estamos a falar de activismos que têm procurado articular suas vivências com um olhar mais vasto sobre Portugal e o seu passado. Obviamente que isto se relaciona com dinâmicas internacionais, mas tem uma concretização muito evidente no modo como Portugal ainda resiste a olhar para o seu passado de forma desassombrada e crítica. As questões relacionadas com o museu têm a ver com isso. Isso está a mudar, no sentido em que estes movimentos têm hoje uma capacidade de chegar ao espaço público. Este é um debate sobre a democracia, o Portugal de hoje e a forma como lida ou não com o seu passado.
 

BSM — Há uma politização anti-colonial e anti-racista da memória da desigualdade social em Portugal profundamente relacionada com uma bola de neve política que se criou. Por um lado, pela politização das novas gerações, que têm um capital académico e social que lhes permite ter maior acesso ao espaço público e lhes permite também acesso às redes internacionais anti-coloniais e anti-racistas. Todo este quadro cria uma situação em que se torna insustentável, por exemplo, a ausência de figuras negras no Parlamento.

Há uma [Hélder do Amaral, do CDS].
BSM — Sim, mas pessoas que assumam isto como uma agenda política da sua presença. Torna-se também insustentável nomes de ruas e monumentos que celebram uma memória colonial. É insultuoso para pessoas descendentes ou que se reconhecem como parte daqueles que sofreram a violência colonial e racista.


Há quem diga também que a retirada desses monumentos é reescrever a história.
BSM — Não estou a dizer que se deva retirar os monumentos. Estou a dizer que devem ser contextualizados. Não seria a minha posição que se atirasse uma bomba sobre o Portugal dos Pequenitos. Mas, sem dúvida, aquilo devia ser visto como um monumento ao imperialismo e deve ser lido de uma forma crítica. Deve fazer-se um enquadramento histórico. Em alguns outros casos — não tenho problema nenhum em dizê-lo — deve alterar-se o nome das ruas e não permitir que se erijam hoje monumentos que são realmente insultuosos a quem se reconhece como descendente de quem foi vítima.
 

MC — No fundo, é a discussão sobre que tipo de sociedade queremos. A história é sempre reescrita, vivemos num processo de reflexão constante sobre o nosso passado. O passado não nos chega enquanto bloco estanque que temos que abraçar.

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