América, América, por onde andaste?

Duas visões da história americana: um western ficcional, Sem Deus, e uma série documental, A Guerra do Vietname

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Num momento em que se parece desmantelar metodicamente a imagem da “terra da oportunidade” que o “sonho americano” nos vendeu durante o século XX, é fascinante olhar para trás: perceber como, na verdade, a realidade da história americana esteve sempre muito bem escondida pela ficção que se foi construindo à superfície. Como a “busca da felicidade” e da “justiça para todos” inscrita na Constituição nunca foi tanto um direito adquirido como uma “lotaria” caótica. Jeff Daniels não diz outra coisa, no papel de um pistoleiro cruel com alma de pregador, na soberba mini-série de Scott Frank Sem Deus: rezem tudo o que quiserem, mas Deus tanto fez o homem como a cobra e no Oeste selvagem não há lei nem deus que salve.

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Num momento em que se parece desmantelar metodicamente a imagem da “terra da oportunidade” que o “sonho americano” nos vendeu durante o século XX, é fascinante olhar para trás: perceber como, na verdade, a realidade da história americana esteve sempre muito bem escondida pela ficção que se foi construindo à superfície. Como a “busca da felicidade” e da “justiça para todos” inscrita na Constituição nunca foi tanto um direito adquirido como uma “lotaria” caótica. Jeff Daniels não diz outra coisa, no papel de um pistoleiro cruel com alma de pregador, na soberba mini-série de Scott Frank Sem Deus: rezem tudo o que quiserem, mas Deus tanto fez o homem como a cobra e no Oeste selvagem não há lei nem deus que salve.

Sem Deus, mini-série de sete episódios que o serviço Netflix estreou em Novembro, é, a um nível, um western relativamente tradicional, sobre a luta pela sobrevivência de uma pequena cidade mineira, pelo meio de um duelo mortífero entre o cabecilha de um gang criminoso e o seu ex-braço direito, que fugiu com o saque. A outro nível, é um olhar violento, perturbante, sobre uma cultura patriarcal, xenófoba e autoritária, onde a lei do mais forte se sobrepõe à decência e à justiça, as mulheres são cidadãos de segunda e os índios são ralé. A metáfora não é subtil – La Belle, onde tudo se passa, é uma cidade habitada apenas por mulheres, cujos homens morreram todos num acidente na mina. Mas Frank, veterano argumentista (Relatório Minoritário, Logan), sabe voltar a forma do western a seu favor para contar outras histórias de um passado forjado numa violência que a história edulcorou, e em alguns casos até mitificou.

É também por esse olhar por trás da cortina que se torna absolutamente vital ver a espantosa série documental de Ken Burns e Lynn Novick A Guerra do Vietname, que entra em rotação no Netflix no dia 20. Ao longo de 17 horas, com testemunhos de combatentes, políticos, observadores, familiares ou académicos de ambos os lados do conflito, Burns e Novick exploram todos os cambiantes de uma guerra que ainda hoje é uma ferida aberta na psique americana: um conflito iniciado em nome da defesa dos “valores americanos” contra o papão comunista, mas que, como os documentos históricos têm provado, descambou rapidamente para um sorvedouro indefensável de sangue e tesouro. A certeza do “excepcionalismo americano” e a autoconfiança inabalável na grandeza de uma causa; a fuga para a frente incapaz de aceitar uma possível derrota; a sensação crescente de que toda uma geração, e sobretudo toda uma classe social, estava a ser sacrificada em nome de um imperialismo cultural e militar defendido pelas elites: é tudo isto que A Guerra do Vietname exibe, reinscrevendo, sempre, o factor humano na História. 

Nenhuma destas séries é um objecto reconfortante. Mas são vitais para percebermos como a América de ontem chegou à América de hoje.