O fado de Duarte não é novo, mas é só dele

Após um disco dedicado ao luto de uma relação, sedimenta o seu fado muito pessoal em Só a Cantar, álbum em que reflecte a reconstrução em cima das ruínas e o fado dos dias de hoje.

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Na imponente sala da Ópera Comédie de Montpellier, com mais de 600 pessoas a preencher plateia e camarotes, há um silêncio solene a respeitar cada um dos 20 temas do concerto joão filipe
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Duarte não é uma popstar. É ele quem o diz ao público da Ópera Comédie de Montpellier, após a fortíssima ovação com que é brindado no final do espectáculo do passado fim-de-semana na cidade francesa. Em vez de abandonar o palco e fingir-se a caminho dos bastidores à espera que a sala manifeste a sua vontade em não parar por ali, dá umas tréguas aos músicos (exemplares Pedro Amendoeira na guitarra portuguesa e João Filipe na viola de fado) e atira-se armado apenas com a voz ao tema popular Vou-me embora, vou partir. É o primeiro momento de sublimação da intimidade que Duarte constrói muito conscientemente em crescendo, conquistando a sala sem pressa de a ter logo na mão.

É um vagar de quem não está disposto a meter-se por atalhos para alcançar a popularidade; nem embarca em fórmulas com menos arestas e mais fáceis de servir uma vasta audiência internacional sempre que o fado se deita na cama com a linguagem da pop. Duarte não é uma popstar, avisa. E, por isso, tende a identificar-se com os mais antigos no fado e não tanto com os fadistas e os músicos da sua geração. Nos fados, nos bastidores dos fados, são as histórias passadas de boca em boca que ajudam a perceber a essência desta música e a clarificar o lugar de cada um em relação à tradição que o precede.

Para Duarte, psicólogo de profissão, o crescimento de um fadista não é muito diferente da construção de qualquer homem ou mulher que se define nas escolhas, nas relações sociais e na postura perante os outros que decide adoptar. Aquilo que foi percebendo nas suas conversas com Maria da Fé, Carlos do Carmo, José Mário Branco ou Aldina Duarte é que o caminho pessoal de cada fadista ou cada músico leva o seu tempo; por outro lado, quando se opta “por ser uma coisa muito do imediato, se calhar até é bom, mas depois desaparece porque não tem sustento”, afirma ao Ípsilon. “Eles diziam-me que este é o caminho mais difícil, mas se calhar é aquele em que temos mais a certeza de que aquilo que fazemos somos nós e não os outros.”

É esse imediatismo que está na mira de versos como aqueles com que arranca Que fado é esse afinal?, tema incluído no seu último álbum, com música de José Mário Branco: “Convém que seja moderno / ritmado sem critério / e fácil de consumir / Que não deixe de imitar / as modas que estão a dar / que não ouse resistir”. E continua: “Convém que não seja triste / que se venda, que se lixe / o valor do seu passado / Que se sirva ao desbarato / como um hambúrguer no prato / produto pré-fabricado.” Duarte recusa, por isso, um percurso de fados prontos a servir, não querendo rodear-se de instrumentações que vão além da guitarra portuguesa, da viola de fado e do ocasional baixo, nem se mostrando interessado em privilegiar um fado que domestique a sua carga trágica ou dramática.

Aquilo que lhe interessa, frisa, é respeitar uma tradição que, na origem, “era mutável”. Ou seja, ao partir de fados tradicionais, Duarte quer respeitar aquilo que faziam Amália Rodrigues, Berta Cardoso, Lucília do Carmo, Alfredo Marceneiro, Carlos Ramos, Maria Teresa de Noronha, Carlos do Carmo ou qualquer outro dos grandes intérpretes do género: cantar as suas letras, criar o seu próprio reportório, a partir de uma matriz comum. Daí que não siga também o caminho de se abastecer de uma ementa de clássicos, já bastamente reconhecidos para que qualquer ouvinte de fado – ainda que pouco assíduo – possa relacionar-se sem atrito com aquilo que lhe é proposto. Cantar o reportório já testado e validado popularmente, afirma, “não seria diferente de quem serve hambúrgueres ou galos de Barcelos todos os dias, um souvenir que o turista leva consigo”. Seria fado a raiar o industrial.

A única excepção a esta regra no excelente concerto de Montpellier é, já em encore, Estranha forma de vida, tema maior da cartilha amaliana que leva a plateia ao rubro. Acontece logo a seguir a Vou-me embora, vou partir, esse momento em que a voz do fadista se deixa invadir pelos requebros do canto à alentejana, as suas origens – declaradas logo no início do concerto, quando os músicos entram em palco ao som de um canto de trabalho recolhido por Michel Giacometti no Alentejo. Mesmo na casa de fados, no Sr. Vinho onde canta há 14 anos, Duarte privilegia os seus próprios fados e não cede à tentação de recorrer a um best of de fados clássicos que relatam, na verdade, outras vidas.

É também isso que verbaliza noutro dos temas do novo Só a Cantar: “Não são fados são covers / imitações desalmadas / reproduções do destino / tantas vezes tão cantadas / Esses que tentam viver / aquilo que outros viveram / acabam por se perder / no tanto que não fizeram”. Que fado é este afinal? e Covers são criações em que Duarte diz estar a assumir não uma postura crítica, mas a propor uma reflexão (que não é novidade). “É uma coisa que sempre se fez – o fado a pensar-se a si mesmo”, responde. “Acho que é importante pensarmos o que estamos a fazer com isto, da mesma forma que nos questionamos a nós próprios vida fora.”

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Covers, telemóveis, turistas

E nem só de fados fala Covers (que segue a deixa do Fado Pechincha original), acrescenta. Essa descaracterização que retrata, essa perda de contacto com uma linguagem que foi elevada a património da Unesco mas que corre o risco de se tornar caricatural, essa adequação ao gosto do visitante médio encontra, sem grande esforço, um espelho na própria cidade de Lisboa. Lisboa enquanto montra cuidada para agradar ao visitante, propensa aos despejos dos seus habitantes para arranjar espaço para dar dormida a mais uns quantos turistas, vendedora de falsas tradições como os pastéis de bacalhau com queijo da serra, lugar de profusão de casas de fados ao desbarato que enganam o espectador pontual mais desavisado.

Em Covers, Duarte canta ainda versos que dão conta da “vampiragem pós-moderna / da Lisboa dos turistas”, mas na noite do Sr. Vinho em que o Ípsilon o encontra na casa de fados, as palavras rapidamente se alteram para “Lisboa dos turistas” se converter em “telemóveis e turistas”. É uma resposta do momento, com o fadista agastado com um cliente que tenta enganar o seu pedido para que a sua actuação não seja filmada. “Para mim aquela casa sempre foi um espaço que oferece uma exposição e uma intimidade muito grandes entre quem está a tocar, a cantar e a escutar”, comenta passado um par de dias. “E faz-me impressão que estejamos a dar alguma coisa às pessoas enquanto elas estão de telemóvel à frente da cara, mais preocupadas em gravar do que em ouvir-nos.” Nessas ocasiões, serve-se do inglês para lhes dizer: “se estás a filmar isto, é porque não estás a viver.”

Na imponente sala da Ópera Comédie de Montpellier, com mais de 600 pessoas a preencher plateia e camarotes, não é necessário sacar de tais advertências. Há um silêncio solene, condizente com o espaço, a respeitar cada um dos 20 temas do concerto. Mas, ainda assim, Duarte termina tentando reproduzir o ambiente intimista da casa de fados naquele espaço inaugurado em 1888 (depois de três incêndios terem insistido em destruir o teatro nos 130 anos anteriores). E é então que chama os músicos, tomam as posições combinadas durante o rápido soundcheck – o tempo necessário para encontrar conforto em palco e não acentuar os nervos que o espaço desperta – na boca de cena e o fadista salta para a plateia, onde larga as palavras sem artifícios.

Ganha-se em ataque e verdade aquilo que se perde em definição. Mas é indesmentível que sem a artificialidade dos sistemas de som o fado é mais fado. Torna-se mais próximo e rente à carne. O público, sem grandes explicações, sabe-o de imediato.

Depois das ruínas

Duarte precisa de conceitos para neles alicerçar a construção de cada álbum. “Plataformas de construção”, como lhes chama, assentes em fados tradicionais – desta vez, a correspondência entre letras e composições teve a ajuda de Aldina Duarte, com quem partilha algumas noites no Sr. Vinho, com resultados soberbos em Sobretudo cinzento ou Mordi a tua mão. Depois de em Sem Dor nem Piedade (2015) ter criado um disco para cumprir o luto de uma relação, em Só a Cantar quis pensar como se avança “depois das ruínas” deixadas pelo disco anterior. “Um pouco como as cidades”, comenta, “como podemos aproveitar as ruínas que ficaram e depois desenvolvermos uma nova cidade em torno disso, um pouco como Évora e Roma.” Aqui, estar só não é sinónimo de solidão; é sobretudo o reconhecimento de que há escolhas, crescimentos e reconstruções que exigem acção individual.

A ligação entre os dois álbuns estabelece-se sem dificuldade através de Vai de roda. É uma autoria de Duarte com intenso travo alentejano, que aparecia no álbum anterior num registo mais despido e melancólico, só para voz e percussão, recriado desta vez com a habitual instrumentação do fado. É um dos temas de rasgo popular – a par de Maria da Rocha ou da canção Rapariga da estação – em que o cantor se permite fugir ao fado e que justifica a presença de João Gil no lugar de produtor, arregimentado quase por acidente, quando Duarte avançava já para estúdio e descobriu no ex-Trovante a presença certa para garantir “uma lente exterior ao disco”.

Vai de roda salta do alinhamento de Montpellier à última hora. No alinhamento de Duarte é possível ainda ler a sua escolha como tema final, mas é trocado no momento quando se sobrepõe a vontade de manter um registo mais tradicionalmente fadista para fechar o concerto. Contornando a menor fluência em francês, os temas são apresentados com recurso a uma cábula, em que o cantor se permite introduzir algum humor como ao apresentar Rimbaud, esse “poeta maldito” que é nome de música do seu reportório mas que, comenta em palco, não justificaria tanto o epíteto de “maldito” quanto governantes como Trump ou Putin. Duarte, crente de que em cada fado deve viver uma história, vai distribuindo ao longo da noite pistas básicas para a compreensão do que se passa nos versos e nas entrelinhas.

Rimbaud fala de “estrelas cadentes”, de figuras que povoam as vidas alheias e desaparecem consumidos por uma qualquer vertigem, numa sedução do fadista por aquilo que foge à rotina dos dias que se parecem uns com os outros. Em Dizer, por outro lado, comenta as vozes que gritam nos teclados das redes sociais e que comentam tudo o que diz respeito aos outros com a ligeireza de quem nem sabe daquilo que fala. “São preocupações com a linguagem do meu tempo”, diz Duarte, consciente de que esta é uma marca inequívoca do seu fado.

Essa característica tem levado cada vez mais fadistas a procurarem-no, pedindo-lhe letras que possam ajudar a construir os seus reportórios. É algo que Duarte vai tentando encaixar numa agenda carregada, com a psicologia a exigir uma dedicação (garante também de liberdade artística) que o fado disputa aos fins-de-semana, entre as noites no Sr. Vinho e os concertos no estrangeiro (sobretudo em França, onde trabalha com um agente local e a sua reputação construída em palco começa a atingir uma dimensão considerável).

Por onde quer que passe, Duarte vai mostrando que ainda há fado feito sem piano, percussão ou bateria, ao mesmo tempo que não se cansa de repetir que este seu fado não é novo. Mas é único, ainda que povoado por dúvidas, porque é o seu. É quanto basta.

O Ípsilon viajou a convite de Alain Vachier Management

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