Revisitar Júlio Pomar: um artista em movimento

Umas vezes falando através da pintura, outras fazendo o uso da palavra, Júlio Pomar nunca perdeu a irreverência, a vontade e a necessidade de pôr o mundo do avesso e todas as convenções em questão. A inquietação terá estado na base da transformação contínua da sua obra.

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Escrevo com os olhos brilhantes.

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Começo com uma frase de Michel Waldberg que dá conta da pluralidade de sentidos para a qual a obra de Júlio Pomar abre. “Não conheço obra mais paradoxal, mais contraditória em aparência, do que a de Júlio Pomar. […] Vi-o incessantemente mudar de estilo (se é que esta palavra ainda tem algum significado), renovar os temas e as técnicas, desiludir as expectativas […], recusar qualquer barreira, qualquer encerramento, ir mais além, largar as amarras, arriscar tudo, dar reviravoltas conceptuais, recomeçar do zero, pôr a vida em jogo na pintura e a pintura em jogo na vida, enfrentar sem descanso e por assim dizer só com as mãos, o ‘branco desassossego’ da tela ou do papel.”

Esta frase exprime a potência que a obra de Júlio Pomar transporta, em alguns casos, influenciando determinantemente o curso da arte portuguesa e dos seus sucessores contemporâneos. Por isso, desde o momento em que comecei a trabalhar com o pintor, tornou-se mais desafiante descobrir o que une esta obra ao longo de sete décadas do que as variações que inevitavelmente assumiu para se renovar. Aquilo que percorre a obra deste autor é uma procura vincada pelo movimento. Como disse noutra ocasião, o artista “movimenta-se a pintar e move espíritos a escrever. Pomar busca o movimento e este, como se lhe escapasse já ao controlo, ganhando autonomia, avança das suas telas em direcção ao espaço do espectador. E a cor ganha espessura, impacto, recua e avança, nas suas tonalidades planas ou compostas. Os traços do desenho ganham vida como se se mexessem sobre e no próprio papel”.

Umas vezes falando através da pintura, outras fazendo o uso da palavra, Pomar nunca perdeu a irreverência, a vontade e a necessidade de pôr o mundo do avesso e todas as convenções em questão. A inquietação terá estado na base da transformação contínua da sua obra, tendo-o feito mudar esteticamente, sem temer aceitações ou rejeições — o que, diga-se, paradoxalmente, o tornou um artista raro e excepcional.

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Júlio Pomar e os seus pincéis Adriano Miranda

Apreender as reviravoltas que perfazem a carreira de um artista é compreender também a história da arte e perceber que esta se faz do que foge à norma, daquilo que se apresenta controverso, ou não consensual. Neste âmbito, não é possível esquecer o percurso de Pomar, desde o neo-realismo, como uma figura da contestação e da crítica ao regime — problematização e sentido crítico que nas diversas fases soube alargar às próprias noções disciplinares, forjando colaborações que pareciam inconciliáveis, unindo pólos antagónicos, aproximando cultura erudita e cultura popular. Foi esta amplitude que a equipa encontrou na sua obra, particularmente eu e Pedro Faro que trabalhámos directamente com o pintor, quando chegou ao Atelier-Museu para abrir as portas ao público, a 5 de Abril de 2013. Aí foi depositada uma colecção de cerca de 400 obras pela sua fundação, a qual correspondeu sempre, sem reservas, às solicitações do Atelier-Museu. Havia que perceber de que modo a obra deste artista, os conceitos e problemas a ela inerentes se mantêm operativos no presente, nomeadamente na obra dos seus pares. Não se tratava portanto de olhar para trás, mas de fazer do museu um espaço pleno de ensaio e de atelier. Significa que revisitar a obra de um artista, compreendê-la por dentro e por fora, nos seus fundamentos e na sua produção concreta, reside num movimento de ida e volta, procura e investigação, uma ponte entre passado e presente, sempre com o intuito de perceber aquilo que a obra semeou e abriu no tempo posterior.

Este desafio, no qual revisitar a obra tem um sentido prospectivo e não retrospectivo ou melancólico, só foi possível com a cumplicidade do pintor, que, acompanhando de perto o trabalho da equipa, atribuiu uma “carta-branca” ao trabalho do Atelier-Museu. Confiou como se fechasse os olhos e se entregasse ao movimento de uma dança da qual era protagonista e simultaneamente espectador. Foi assim que sorriu à chegada de cada nova exposição, mostrou curiosidade pelas novas gerações, revisitou a sua própria obra e espantou-se cada vez que uma pintura sua, que não via há meio século, chegava ao museu para ser exposta.

Digo muitas vezes que a maior lição, o maior ensinamento, que recebi de Júlio Pomar foi a capacidade de descer (até mim, até à equipa do museu), confiando inteiramente – com expectativa e entrega – nas propostas que o museu lhe ia apresentando, sem nelas interferir. Quero com isto dizer que só podem descer aqueles que já estão muito alto; só são capazes dessa generosidade aqueles que na partilha nada temem perder. Das sessões de trabalho regulares, estendidas por tardes e almoços em conversa comigo e Pedro Faro (adjunto para a parte artística do museu), em que nos fazia sentir como se não estivéssemos a trabalhar, lembro os seus comentários e as frases lapidares, ditos no momento certo (nem um pouco antes nem tarde de mais), e que hoje sei que se revertem na conduta e no exercício do museu. Com ele aprendi que abrir as portas, abrir os braços, abrir possibilidades e potenciar colaborações é ganhar.

Foi assim que, passo a passo, se construiu o Atelier-Museu, espaço com o seu nome. Não o edifício. Refiro-me ao programa, ao lugar, ao espírito de entreajuda, de desafio, de abertura que para aí se desenhou com referência à obra e à figura de Júlio Pomar e onde entraram diferentes gerações, de diferentes áreas disciplinares, aí exercendo e pondo em prática o seu sentido crítico.

Concepção, escolha de obras, montagens, inaugurações, conversas, gravações, seminários, cursos, publicações, atribuição de bolsas, debates, momentos de convívio, acções de serviço educativo, concertos: em tudo isso Júlio Pomar participou fazendo sentir aos convidados que o lugar, mais do que dedicado exclusivamente à sua obra, era deles também.

No ano de 2013, já com o Atelier-Museu em pleno funcionamento, foi atribuído ao artista o grau de doutor honoris causa pela Reitoria da Universidade de Lisboa. E em 2014, como forma de reconhecimento pela cooperação da CML e pelo trabalho do Atelier-Museu e EGEAC, fez uma nova adenda à doação para acrescentar um número significativo de obras de arte à colecção em depósito no museu, alargando assim as suas possibilidades de trabalho. 

Com cinco anos de actividade no seu balanço, desde que abriu as portas, e a celebrar os 50 anos do Maio de 68, o Atelier-Museu Júlio Pomar conta já com a colaboração de inúmeras instituições, artistas e profissionais de várias gerações, de campos de actividade distintos, da arquitectura às artes plásticas, passando pela crítica da arte e outras áreas de reflexão, aos quais se têm juntado um público crescente de exposição para exposição. Desde o início, Júlio Pomar seguiu e colaborou activamente com o Atelier-Museu, vendo realizadas, até à data, várias exposições em torno da sua obra e uma programação que procura alargar os âmbitos de leitura do seu trabalho, revelando novas ligações do artista com a contemporaneidade, de que foram exemplo as exposições com Rui Chafes, Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis, mas também exposições comissariadas por curadores que de modos diferentes Pomar respeitou: Delfim Sardo, Paulo Pires do Vale, Catarina Rosendo, Maria do Mar Fazenda, Hugo Dinis, Alexandre Melo.

A fim de facultar ao público ferramentas de análise, o Atelier-Museu Júlio Pomar continua a apostar fortemente no seu projecto editorial, tendo editado até à data 20 publicações, entre as quais se destacam os catálogos e as entrevistas aos artistas, nomeadamente a entrevista de fundo realizada, durante dois anos, ao pintor, com o título: O Artista Fala – Conversas com Sara Antónia Matos e Pedro Faro (2014). No que se refere ao projecto editorial são de destacar ainda as três publicações dos textos críticos que o autor publicou entre 1942 e 2013, podendo pela primeira vez ter-se acesso à “parte escrita” da sua obra, a qual tem sido considerada por diversos pensadores tão importante quanto a parte plástica — Notas sobre Uma Arte Útil; Da Cegueira dos Pintores; Temas e Variações (2014).

Além das exposições que desenvolve no seu interior, o Atelier-Museu, em 2015, começou o seu programa de itinerâncias levando “portas fora” a obra de Júlio Pomar, tendo desenvolvido parcerias com várias autarquias, dando a conhecer a obra do artista noutras regiões do país, estando de momento no Museu do Côa.

Para além da vertente de exposições e divulgação da obra do autor, também por vontade do próprio, em 2015, o Atelier-Museu instituiu um prémio de curadoria de arte contemporânea com o seu nome, mostrando-se assim aberto às propostas das novas gerações de profissionais e criou uma bolsa de residência em Nova Iorque que, em alguns casos, confere aos artistas nomeados a sua primeira experiência de internacionalização.

Com 92 anos de idade e mais de 70 anos de carreira, Júlio Pomar trabalhou diariamente no seu atelier quase até à sua morte, tornando a arte presente na vida do dia-a-dia, o que é patente em várias obras públicas, e particularmente no Metro, na Estação do Alto dos Moinhos, em Lisboa, e no passaporte dos cidadãos portugueses, onde Fernando Pessoa está representado pela mão deste artista.

É o único pintor português que, em vida, viu uma obra sua, o Almoço do Trolha, classificada pelo Estado português (2015), como “bem móvel de interesse público”, podendo dizer-se que Júlio Pomar não só faz parte da história da arte portuguesa, como a tem “construído” com ele.

Revisitar a obra de Júlio Pomar será sempre olhar para a frente e nunca para trás. De acordo com o desejo do pintor, esta manter-se-á a missão do Atelier-Museu.

De olhos brilhantes escrevo, recordando a curiosidade e o brilho inigualável dos de Júlio Pomar.

 

Directora do Atelier-Museu Júlio Pomar