Regulador da Saúde tem 58 pessoas para fiscalizar 27 mil estabelecimentos

Presidente da Entidade Reguladora da Saúde diz que houve 5500 candidaturas para os 27 lugares abertos em 2017, mas que ainda não estão preenchidos porque o Ministério da Saúde só deu “luz verde” no final de Outubro passado.

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Adriano Miranda

“É uma frustração tremenda” perceber, logo no início do ano, que houve “um corte de um milhão e meio de euros” de um orçamento total de 8,5 milhões, lamenta Sofia Nogueira da Silva, que lidera a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) há quase dois anos. Doutorada em Economia e professora universitária, aos 44 anos está à frente de uma estrutura que continua a ter pouco mais de meia centena de funcionários para fiscalizar um universo enorme de estabelecimentos, cerca de 27 mil, e que também recebe e tem que tratar milhares de reclamações por ano. “Qualquer pessoa percebe que 58 colaboradores para 27 mil regulados não é um rácio razoável”, enfatiza. A agravar, em 2017 as cativações representaram 23% do orçamento global do regulador e este ano já vão em 9%, precisa. Na primeira entrevista que dá desde que é presidente da ERS, Sofia Nogueira da Silva defende que esta situação “resulta em prejuízo do cidadão e, em particular, do cidadão doente”. 

Revelou há dias, durante uma audição na Comissão Parlamentar de Saúde, que as cativações representaram 23% do orçamento da ERS no ano passado, impedindo que 27 novos trabalhadores fossem contratados. A situação continua complicada este ano?
No ano passado, a contratação não aconteceu porque não tivemos autorização em tempo. A formalização junto do Ministério da Saúde foi feita em meados de Abril e a autorização só chegou no final de Outubro.

Estes 27 novos funcionários ainda não estão a trabalhar, portanto?
Ainda não, estamos a terminar o processo de selecção. Recebemos 5500 candidaturas para os 27 lugares, o que constitui uma dificuldade acrescida, porque temos uma estrutura pequena. As cativações, no ano passado, representaram 23% do orçamento, e este ano já vão em 9%, mesmo antes da aplicação do Decreto-Lei de Execução Orçamental. Para além disso, este ano, para um orçamento de 8,5 milhões de euros, temos um corte orçamental de 1,5 milhões, que representa 30% das despesas com pessoal.

Tinha antecipado que seria necessário, pelo menos, duplicar o número de colaboradores. Quando é isso será possível?
Temos ainda prevista a contratação de mais 30 pessoas, que poderá estar comprometida. Pela dimensão e diversidade do universo regulado e pela complexidade e múltiplas áreas de intervenção, a ERS tem necessidade de equipas multidisciplinares e com formação específica, de modo a robustecer a supervisão e a fiscalização, o que nos permitirá estudar, conhecer e acompanhar melhor os estabelecimentos regulados.

No Parlamento, admitiu mesmo que teve problemas em pagar salários no final do ano.
Sim, tivemos problemas para pagar salários, porque as cativações incidiram largamente na despesa com pessoal.

Como é que se compreende esta situação, quando a ERS tem mais de 20 milhões de euros acumulados de receitas que não foram gastas em anos anteriores?
As nossas receitas não vêm do Orçamento do Estado. Os resultados orçamentais excedentários vão para saldo de gerência. Em cada ano, esse excedente ilustra aquilo que poderia ter sido feito e não foi.

Como é que esse problema se reflecte no funcionamento da entidade reguladora?
A um regulador a quem estão confiadas tantas e tão complexas competências, é evidente que estes constrangimentos não facilitam a eficácia das formas de organização já existentes, e muito menos o desenvolvimento de formas novas de intervenção, que exigem a constituição de equipas diferenciadas. Repito o que já disse na Comissão Parlamentar de Saúde: tudo isto resulta em prejuízo do cidadão e, em particular, do cidadão doente.

Como é que tem gerido esta situação?
É uma frustração tremenda saber logo em Janeiro que, de imediato, um milhão e meio de euros vai para saldo de gerência, tal como irão os montantes sujeitos a cativação. É dinheiro que é retirado do sistema de saúde e que agora não podemos usar no sistema de saúde.

Quantos funcionários tem a ERS, afinal? E qual é o universo de regulados?
Temos mais ou menos 27 mil estabelecimentos registados e 58 funcionários. Mesmo assim, após uma reorganização em 2016, criámos condições para ganhos de eficiência e realizámos mais em todas as áreas. Mas os projectos novos ficaram atrasados e, em muitos casos, adiados.

Também disse aos deputados que gostaria de visitar cada estabelecimento pelo menos de dez em dez anos. Não é um intervalo demasiado grande?
Para este ano antecipávamos, com o crescimento da nossa estrutura, passar a conseguir visitar cada estabelecimento de dez em dez anos. Não é suficiente, devíamos fazê-lo em média, pelo menos, de cinco em cinco anos. Se tivermos escala, a presença no terreno poderá ter um efeito dissuasor que poderá, por sua vez, levar a alterações consistentes de comportamentos. Há muitos estabelecimentos que ainda não tiveram a visita da ERS.

O rácio de funcionários por estabelecimento de saúde é, portanto, baixíssimo.
Quando falamos com outras reguladoras e dizemos que temos 60 pessoas, não compreendem. A comparação com entidades europeias congéneres evidencia que a nossa escala é excessivamente reduzida. Qualquer pessoa percebe que 58 colaboradores para 27 mil regulados não é um rácio razoável. Por exemplo, a reguladora inglesa, que regula 30 mil estabelecimentos de saúde e do sector social, tem três mil trabalhadores. Nós temos um rácio de um para 450 estabelecimentos.

Como é que é possível regular um universo desta dimensão com tão poucas pessoas?
O que fazemos, tentamos fazer bem, mas é possível fazer muito mais e melhor. No quadro do nosso plano plurianual, e apesar dos vários constrangimentos, mantemos como áreas prioritárias de intervenção para este ano o célere tratamento e monitorização das queixas e reclamações dos utentes, a promoção da literacia, uma maior presença no terreno - em particular através de acções de fiscalização e vistorias no âmbito do processo de licenciamento -, a avaliação económico-financeira dos prestadores, e novas áreas de avaliação da qualidade e segurança dos cuidados de saúde. Há ainda que melhorar formas de organização interna e procurar uma melhor interacção com o universo dos regulados e outras entidades intervenientes no sector. O Ministério da Saúde tem tudo a ganhar em ter uma reguladora forte.

Os prestadores de cuidados de saúde queixam-se de que as taxas que pagam à ERS são muito elevadas. Não é possível reduzi-las?
Não. O cumprimento mínimo do que está estatutariamente estabelecido como missão da ERS exigirá muito mais. O problema não é o excesso de receita, a questão está na sua utilização. O irónico é que quase todas as instituições do mundo dizem que gostariam de fazer mais mas não têm recursos, enquanto nós temos recursos e não os podemos usar.

No caso dos IPO (Instituto Português de Oncologia), o problema com as transferências de doentes que ultrapassaram o plafond nos privados está solucionado? A ERS fez um parecer no ano passado, mas o presidente do IPO de Lisboa diz que o problema persiste.
Em 2017, demos um parecer relativamente a esta questão e, desde então, continuamos com um processo de monitorização. Este problema concentra-se sobretudo em Lisboa. É importante que as pessoas percebam as consequências no caso de o plafond do seu seguro de saúde se esgotar. Acima de tudo, tem que haver transparência nos processos, as pessoas têm que compreender o que contratualizam, quais são os seus direitos e os limites da despesa.

Há queixas de negligência?
Há. Sempre que há dúvidas sobre questões deontológicas ou de prática clínica recorremos à colaboração e parecer das ordens profissionais. Pontualmente, encaminhamos processos para o Ministério Público.

No ano passado decretaram nove suspensões. Não é pouco?
É muito crítico para um prestador ficar impedido de continuar a funcionar e ter um prazo para alterar procedimentos. Tendo em conta o número de fiscalizações que fazemos, nove suspensões é relevante.

Voltamos à questão inicial. A ERS é uma entidade autónoma, mas na prática está dependente do Governo do ponto de vista financeiro.
Sim, temos dinheiro mas temos que ter condições para realizar o que está definido pelo legislador. O que se constata é que existe, de facto, uma receita que não pode ser integralmente utilizada.

Todos os intervenientes no sector insistem que é necessário aumentar o financiamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
O SNS está em esforço e não é de agora. Há uma pressão enormíssima para que a despesa cresça. Cabe-nos a todos decidir que SNS e que sistema nacional de saúde queremos.

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