Cuidado, a Gulbenkian está a expor um falo

A fundação mostra quatro obras de Clara Menéres e João Cutileiro dentro de armários. Para as ver, é preciso abrir as portas. A ideia é não chocar os visitantes. É o vírus do neo-puritanismo ou um híbrido incompreensível?

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Cheguei à exposição Pós-Pop. Fora do lugar-comum, no museu da Fundação Calouste Gulbenkian, com a ajuda de Eric Lander, o professor do MIT que acaba de cair na armadilha do politicamente correcto.

No dia 11, o Laboratório de Cold Spring Harbor, em Long Island, teve o encontro anual Biologia dos Genomas. Num momento não anunciado, Lander, que é director do Broad Institute do MIT e Harvard e trabalha com genomas, fez um breve discurso de homenagem ao cientista James Watson e no fim propôs um brinde. Havia três pretextos: os 30 anos dos encontros, os 15 anos do Projecto do Genoma Humano (um consórcio internacional com uma tarefa hercúlea e resultados extraordinários), e os 90 anos de Watson, que foi o seu primeiro director.

Watson é co-autor de um dos maiores avanços científicos de sempre — a estrutura da molécula de ADN ou “dupla hélice” —, razão pela qual recebeu o Nobel da Medicina em 1962. Em 2007, passou a ser conhecido por ser racista e misógino. Numa entrevista disse-se preocupado com “o futuro sombrio de África” porque “todas as políticas sociais se baseiam no facto de a inteligência deles ser igual à nossa, quando todas as provas mostram que não é bem assim”. Foi demitido do Laboratório e afastado do circuito de conferências. Sem dinheiro, vendeu o Nobel por quatro milhões de dólares.

Agora o debate voltou — mais feroz. Alguns cientistas perguntaram como era possível que um “racista, sexista e anti-semita” fosse homenageado. Houve duas reacções relevantes. O director do laboratório esteve à altura. O texto é lacónico mas deixa no ar a ideia de que umas frases isoladas ditas aos 80 anos numa entrevista não apagam, por racistas e ridículas que sejam, a genialidade e importância de Watson.

É preciso abrir estas três portas para ver as esculturas de João Cutileiro dr
Abertas as portas, as esculturas de Cutileiro: "Mrs. Portnoy complaining", 1969-70; "Divertimento", 1970; "Woman who does not know whether she’s coming or going" (Homenagem a Man Ray), 1972 dr
"Relicário" de Clara Menéres ao lado dos bordados que só foram expostos uma única vez dr
"Relicário", 1969, escultura em resina sintética de Clara Menéres (1943-2018) dr
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É preciso abrir estas três portas para ver as esculturas de João Cutileiro dr

A outra reacção foi de Eric Lander. O professor do MIT enviou um email aos colegas de Harvard a pedir desculpa. Explica que, apesar de ter usado a palavra “flawed” no discurso referindo-se a Watson, devia ter dito mais: “Digo-o agora: rejeito as suas ideias e considero-as desprezíveis. Não têm lugar na ciência. Devia ter seguido o meu instinto e rejeitar o convite.”

Brindar a James Watson numa sala de cientistas da biologia molecular não é muito diferente de brindar a Picasso ou a Gauguin numa sala de artistas. São génios cheios de “flaws”. Há uns anos li uma biografia da neta de Picasso. Não é bonito.

Foi ao falar do email de Lander na inauguração da feira de arte ARCOlisboa que alguém disse: “Já não é só nos EUA. O politicamente correcto chegou à Gulbenkian.”

Fui ver.

Entrei na Pós-Pop e percorri as salas à procura. Passei pela Lourdes de Castro, pelo Sérgio Pombo, pela Teresa Magalhães (que bela descoberta), o Batarda, o Skapinakis... e cheguei a uma grande caixa negra de madeira. À entrada, um aviso: “Esta sala apresenta conteúdos sexualmente explícitos.” Lá dentro, quatro pequenos armários fechados com a palavra “Abrir/Open” na porta. Um tem o Relicário de Clara Menéres e os outros têm três pequenas esculturas de João Cutileiro. Todas já foram vistas noutros locais, sem portas nem avisos. O relicário guarda um falo em resina, da época em que Menéres ainda não se tornara religiosa mas já estudava a história das religiões (não são os hindus que veneram os falos?). Cutileiro divertiu-se. Foi aliás essa a palavra que escolheu para uma das esculturas.

Na Gulbenkian, houve desconforto com a “política interna” de mostrar as obras desta “forma resguardada”, mas passado um mês há alívio: “Ao resguardar não resguardando, em vez de tirar da vista, as obras ficam mais à vista”, diz um insider. “Não é censura.”

É verdade. E justamente por isso é uma opção incompreensível. Se não há pudor em expor, porquê embrulhar as obras dentro de caixas sucessivas, numa exposição que tem como subtítulo “fora do lugar comum” e é sobre os anos 1960/70? Choca menos porque respiramos fundo antes de abrir as portas? Já vimos noutros museus: as crianças riem-se e os adultos fazem de conta que não viram nada e seguem com um ar circunspecto. Amanhã, o que vamos “resguardar”?

Não fui “resguardada” de Jaz Morto e Arrefece, o Menino de Sua Mãe, de 1973, também de Menéres. Ninguém me avisou que, tantos anos depois do fim da guerra colonial, ainda me ia comover.

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