No meio do ruído, aplaudiu-se a diferença

Gritos, palmas ovações, roer de unhas. Na sala de imprensa, viu-se (quase) tudo, mas ficou por ouvir muita coisa. Ao receber o troféu de Salvador Sobral, que criticara a canção vencedora, a israelita Netta insistiu numa mensagem de compreensão.

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REUTERS/Pedro Nunes

Netta, a israelita que venceu a edição de 2018 do Festival Eurovisão da Canção com Toy, já tinha dito no Twitter que só desejava amor a Salvador Sobral. Isto depois de o vencedor de 2017 ter avaliado negativamente, numa entrevista na quarta-feira no PÚBLICO, a canção dela: "De repente, o YouTube achou que eu iria gostar da canção de Israel, e então abri aquilo e saiu-me de lá uma música horrível. Eu pensei: YouTube, muito obrigado, mas não é por aqui.", disse o músico e cantor português.

Na conferência de imprensa, já depois de receber o troféu de 2018 das mãos de Salvador Sobral – o que poderia ter gerado um momento desconfortável –, a cantora israelita afirmou ter sentido que o português a tinha respeitado. Netta, cujo apelido é Barzilai, sublinhou diversas vezes que a canção dela é a normalização e a celebração da diferença.

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EPA/MIGUEL A. LOPES

Foi o final de uma noite intensa, marcada, além da vitória de Toy, pela forma como um homem, entretanto detido pela PSP, conseguiu furar o dispositivo de segurança da Altice Arena e subir ao palco. Tirou o microfone à representante britânica, para gritar algo sobre "nazis" e os media britânicos durante a actuação de SuRie, que interpretou Storm. Há que dar crédito à cantora, que não quebrou e prosseguiu a actuação até com mais garra. Na zona de imprensa, ouviram-se aplausos fortes para a dramática recta final da canção, terminando tudo numa ovação em pé.

Durante as meias-finais, a zona dos jornalistas já era um sítio ruidoso. Na final, foi ainda pior, dado que havia mais pessoas. Muitas delas vestiram-se a rigor, com fatos de veludo púrpura, cabelo pintado, a bandeira do país ou até orelhas feitas da bandeira, mas quase ninguém prestou atenção ao texto da apresentação. Nem aos momentos de humor – com os quais Graham Norton, o apresentador de talk show nocturno irlandês que comenta a transmissão no Reino Unido, terá passado a noite inteira a gozar. Houve quem se risse em tom jocoso das piadas, mas a maioria continuou a falar como se nada fosse.

Não há cá "silêncio, que se vai cantar o fado" quando Ana Moura e Mariza actuam. Não foi à toa que as apresentadoras, Daniela Ruah, Sílvia Alberto, Catarina Furtado e Filomena Cautela, só surgiram em palco 15 minutos após o início da cerimónia, quando as bandeiras dos países a concurso já tinham desfilado pelo palco.

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Actuação da fadista Mariza foi um dos números de abertura da final EPA/JOSE SENA GOULAO

Das 26 canções candidatas, só seis é que ainda não tinham sido interpretadas no palco. Os espanhóis Amaya e Alfred, com Tu Canción, apoiaram-se muito no facto de serem uma história de "amor verdadeiro" (heterossexual e heteronormativo) de um casal na vida real – a relação dos dois concorrentes foi uma das grandes narrativas da última edição da Operação Triunfo espanhola, que Amaya ganhou. Só que, duas canções a seguir, a Lituânia também tinha uma história semelhante, a de Ieva Zasimauskaite, cuja When we're old é uma jura de amor até à velhice ao próprio marido da cantora, que se juntou a ela em palco, sem cantar.

São dois exemplos dos temas dramáticos da noite, ainda para mais ligados a histórias verídicas. Mas, no final, foi a dança, a euforia e a festa que ganharam.

De vassoura na mão

Ao longo da tarde, havia pessoas na sala de imprensa com perucas cor de rosa alusivas ao cabelo de Cláudia Pascoal. Também havia umas quantas na plateia da Altice Arena. A actuação da cantora, acompanhada por Isaura, a compositora de O Jardim, foi das mais despojadas da cerimónia, sem pirotecnias e sem um cenário elaborado, daqueles que são desmontados e montados, enquanto os postais de apresentação dos concorrentes passam na emissão televisiva, com uma rapidez tremenda, por uma equipa que inclui pessoas com vassouras que fazem tudo parecer um jogo de curling. 

Michael Schulte, o alemão que cantou sobre a morte do pai, actuou a seguir, com letra e fotografias de família a passarem atrás dele. Tal como na música portuguesa, era uma canção sobre um ente querido desaparecido – no caso de Isaura, a avó –, mas a abordagem em termos de palco e espectáculo foi totalmente diferente.

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A interpretação da Alemanha EPA/JOSE SENA GOULAO

Outra história real, se bem que só ocorrida durante o festival, é a de Mikolas Josef, ou "o rapaz do salto". O checo de Lie to me, rap/r&b retro branquíssimo com sopros de jazz dos anos 1920/30 – e, como foi notado no Twitter, muito de Talk dirty, a canção de Jason Derulo com 2 Chainz –, conseguiu realmente fazer o salto mortal que o lesionou nas costas durante o primeiro ensaio na Altice Arena. No ensaio geral de sexta-feira, tinha-se ficado por um salto bastante comedido, depois de ter tentado, noutras actuações, saltos vigorosos.

Netta, a concorrente israelita que acabaria por sagrar-se vencedora e cuja prestação foi recebida apoteoticamente pelos jornalistas, tinha tido uma introdução diferente para Toy, talvez um teste de som, no ensaio de sexta-feira à tarde. Mas afinal nada tinha mudado. Tinha a mesma introdução e o mesmo cacarejar, com a ligação ao movimento #MeToo e à emancipação feminina. E o recurso à cultura japonesa, algo que a fez ser alvo de acusações de apropriação cultural nas redes sociais. Isto para além do apelo a um boicote, claramente infrutífero, por causa do seu governo e da situação na Palestina. 

Os fãs de Chipre começaram a levantar-se e a gritar alto "ELENI! ELENI! ELENI!" durante o postal de apresentação de Eleni Foureira, algo que repetiram no final da interpretação. Sabiam a letra toda. A prestação enérgica da cantora, com muitas lições aprendidas do r&b norte-americano – muito Pussycat Dolls, por exemplo –, foi das mais bem recebidas da noite.

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Eleni Foureira, intérprete cipriota, discutiu a vitória até ao fim. Aqui, nos bastidores com o estilista Jean paul Gaultier. EPA/JOSE SENA GOULAO

A canção italiana, do duo de Ermal Meta e Fabrizio Moro, Non mi avete fatto niente, um protesto contra guerras e conflitos, poderia ter sido ofuscada pelo tema que veio antes. E, certamente, pelo que se seguiu, a actuação do produtor Branko com Sara Tavares e Plutónio, Dino D'Santiago e Mayra Andrade. Mas com a ajuda fundamental do televoto, a dupla italiana terminou no quinto lugar. 

A sala de imprensa esteve relativamente atenta às actuações de Salvador Sobral, Júlio Resende e Caetano Veloso, mas o esquema dos 12 pontos por cada país gerou muito mais atenção e tensão. Não necessariamente em relação ao que os porta-vozes de cada país diziam – havia demasiado ruído para sequer se perceber metade do que foi dito. Na primeira parte de votações, a tensão na sala era palpável e as mudanças drásticas no top 3 fizeram muita gente roer as unhas. 

Ouviu-se um sentido "oooh" quando se percebeu que a França não iria ganhar. Chegou a celebrar-se uma possível vitória da Áustria. Na recta final, depois da surpresa que foi a pontuação da Itália, abriu um concurso de gritos entre apoiantes de Israel e de Chipre, sem ninguém se conseguir ouvir. Apesar do boicote, ganhou Israel. "Israel! Israel! Israel!", gritava-se na sala de imprensa, um cântico que passou para "Netta!" a seguir. Foi impossível ouvir o que quer que fosse que se passou depois na cerimónia. 

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