Os ciganos portugueses estão a preparar-se para entrar na política

Academia de Política das Comunidades Ciganas, organizada pelo Conselho da Europa com o apoio da Associação Letras Nómadas, junta cerca de 30 homens e mulheres de etnia cigana

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o Conselho da Europa e a associação Letras Nómadas organizaram a Academia de Política Daniel Rocha

Bruno Gonçalves notou olhares e ouviu cochichos quando foi eleito pelo Bloco de Esquerda para a Assembleia de Freguesia de Buarcos e São Julião, na Figueira da Foz. Não lhe custava imaginar o que ia na cabeça alheia: “Quem é o cigano que entrou porque o BE achou engraçado ter um cigano nas listas?”

A estranheza era, de certo modo, compreensível. Há pouquíssimos exemplos de ciganos na política portuguesa. Por isso mesmo, o Conselho da Europa aliou-se à associação Letras Nómadas para organizar a Academia de Política, um nome pomposo para um processo de formação destinado a impulsar a participação.

Houve uma sessão de três dias no segundo fim-de-semana de Dezembro de 2017, no Centro de Artes do Espectáculo da Figueira da Foz. E outra este fim-de-semana na LAB Center de Torres Vedras. Haverá outra em Outubro, algures em Viseu. E outras depois dessas. São espaços de reflexão estratégica que juntam cerca de 30 homens e mulheres de Norte a Sul do país, com alguma notoriedade no seio das suas comunidades e muita vontade de participar.

Entre os oradores convidados nota-se o peso da esquerda, em particular do PS. O objectivo não é, todavia, partidarizar o evento. Por agora, PS e BE têm mostrado mais disponibilidade para partilhar experiências e reflexões. Há um esforço para que outros partidos o façam nas próximas sessões. Além de oradores com experiência política, o programa contém activistas e académicos conhecedores de temas considerados fundamentais para a integração das pessoas ciganas, como a habitação ou a educação.

“Sabemos que nem todos vão aproveitar”, admite Bruno Gonçalves. “Se tivermos aqui quatro ou cinco que se possam aproximar de partidos e fazer parte das listas, já será uma grande vitória.” Houve vários candidatos nas últimas eleições autárquicas. E pelo menos 20 ciganos a trabalhar nas mesas de voto. “Isso chama para a participação”, analisa aquele mediador sociocultural, vice-presidente da Associação Letras Nómadas. Está convencido de que o voto cigano, organizado, foi determinante nos resultados eleitorais de Beja e Moura, onde as câmaras passaram do PCP para o PS.

Espera-se que a existência desta academia, por si só, possa levar os vários partidos a pensar na possibilidade de incluir ciganos nas suas listas. Não se trata, apenas, porém, de “os ciganos serem mais uns a entrar na guerra das listas”, sublinha Marcos Andrade, do Conselho da Europa. Trata-se de “entrarem na guerra das ideias”. A diversidade não é uma operação de cosmética. Tem um efeito prático, nota José Manuel Pureza, deputado eleito pelo BE, lembrando o papel que o seu colega de bancada, Jorge Falcato, tem tido na defesa dos direitos das pessoas com deficiência.

O tempo é de mudança no seio dos ciganos portugueses. Há uma “geração solitária” que tem estado a abrir caminho no activismo. Há uma “geração solidária” a abrir caminho no ensino superior. E está agora a preparar-se uma “geração solitária” para abrir caminho na política. Bruno tem sido um pioneiro e sabe que não é fácil ser diferente, mesmo dentro das comunidades.

“Internamente sofre-se muito”, revela. Não é só o medo de que quem se distingue se afaste da comunidade, deixe o modo de vida cigano. “As pessoas acham que temos de resolver todos os problemas que existem. Não sabem que isto tudo é um processo. Faço duas coisas que lhes agradam, sou o maior. A terceira não faço, já não presto. E isso desgasta muito”, explica. Há que ter muita resiliência no associativismo. Ao que começa a ver, na política também.

A sua entrada na Assembleia de Freguesia não tem servido para provocar as mudanças que gostaria na sua comunidade. “A grande mudança é perceberem que há um cigano que tem consciência política. Se calhar, quebra alguns estereótipos. Alguns achavam que eu ia ser instrumentalizado pelo próprio partido. Isso não acontece. Sigo a corrente do partido, mas tenho a minha voz.”

“É um momento muito bom”, comenta a secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro, que esteve em Torres Vedras. “Este é um tempo, essencialmente, de grandes sinergias”, esclareceu. Há todo um trabalho que tem sido desenvolvido nos últimos 20 anos. “Começam a emergir resultados muito positivos de capacitação das próprias pessoas ciganas para se organizarem. Estamos num ponto que temos de aproveitar e de potenciar, para verter em acção política.”

“Acredito que se consegue fazer a diferença”, afiança, por exemplo, Emanuel Fernandes, 30 anos, natural dali, de Torres Vedras, município que durante anos elegeu um advogado, filho de pai cigano e de mãe não cigana, que agora é secretário de Estado das Autarquias e dos Municípios. “O pai dele era feirante”, lembra. Casou-se com uma pessoa que não é cigana. Não fez vida de cigano. Mas nunca negou as suas origens. Emanuel Fernandes interrompeu o curso de Direito, que agora quer retomar, casou-se com uma cigana e também quer dar um contributo.

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