Isto não é jornalismo (2)

O jornalismo "útil" nestes tempos pouco propícios a estados de alma seria assim um jornalismo sem regras, um jornalismo justiceiro, em que os jornalistas seriam uma espécie de impolutos anjos vingadores, cowboys virtuosos disparando contra os bandidos em westerns edificantes ou procuradores impolutos em cruzada contra os gangsters nos clássicos policiais desprovidos de subtilezas e ambiguidades.

Confesso que não fiquei tão estupefacto com a invocação do "interesse público" para justificar a divulgação das imagens e gravações de interrogatórios da chamada Operação Marquês como ficara com a Grande Reportagem da SIC onde essas imagens e gravações foram inseridas – e da qual constituem a espinha dorsal, ponto este que, fundamentalmente, me levou a escrever a crónica anterior, "Isto não é jornalismo".

Mas se já antecipara essas reacções, não previ que a argumentação apresentada por alguns dos seus autores fosse tão longe na demagogia e no processo de intenções contra aquilo que me parecia ser de uma evidência linear: que a investigação jornalística tem de ser independente, autónoma, aberta ao contraditório e não uma mera encenação subsidiária da investigação judicial, para além das convicções pessoais de cada um sobre a inocência ou culpabilidade das personagens envolvidas num processo (chamem-se eles Sócrates, Salgado, Bava, Granadeiro ou outros…). A partir do momento em que se instala a suspeição de vivermos num regime de corrupção política generalizada (ou, segundo a fórmula populista, "Todos corruptos!") e de que os ladrões da política e da banca não apenas ludibriam o Estado mas vão ao nosso bolso, tudo parece ser legítimo e defensável.

Assim, quem lembre que o jornalismo encenado e "colado" a uma acusação judicial não é jornalismo pode ser suspeito de vários pecados, veniais ou capitais: ligeireza, moleza, condescendência, "neutralidade", ou falta de integridade ética, de pactuar com trocas de favores ou estar ao serviço de interesses inconfessáveis, uma vez que para o "interesse público" quaisquer meios são bons para atingir os fins (ou seja, neste caso, divulgar vídeos e gravações judiciais para apanhar os corruptos em flagrante e podermos julgá-los em tempo útil e oportuno, na praça pública, e não no tempo sem fim dos tribunais).

O jornalismo "útil" nestes tempos pouco propícios a estados de alma seria assim um jornalismo sem regras, um jornalismo justiceiro, em que os jornalistas seriam uma espécie de impolutos anjos vingadores, cowboys virtuosos disparando contra os bandidos em westerns edificantes ou procuradores impolutos em cruzada contra os gangsters nos clássicos policiais desprovidos de subtilezas e ambiguidades.

O caso de Manuel Pinho, divulgado esta semana, em que o antigo ministro da Economia foi acusado de receber avultados pagamentos do BES através de offshores enquanto estava no Governo não podia ser mais oportuno para os justiceiros – e a prova de que tinham razão –, quando, muito simplesmente, o que aqui está em causa é, para já, o silêncio ensurdecedor do ex-governante, a gravíssima falha ética e os crimes de dissimulação que lhe podem ser imputados.

Caros jornalistas, investiguem, pois, este e os demais casos de manifesto "interesse público" mas sem confundirem tal interesse com qualquer deriva justiceira, numa encenação inspirada em "Já chegámos ao Faroeste?". Essa deriva só aproveita, aliás, como já aqui escrevi, aos eventuais ou reais malfeitores.

PS – Lamento que São José Almeida, jornalista por quem tenho muito apreço pessoal e profissional, tenha precisado de invocar o seu título de presidente da Comissão de Deontologia do Sindicato dos Jornalistas para defender, a título pessoal, o "interesse público" da divulgação das imagens e gravações dos interrogatórios judiciais. São José tem todo o direito de ter a sua opinião mas não lhe fica bem recorrer a um estatuto de autoridade sem que, tanto quanto sei, a Comissão de que faz parte se tenha pronunciado sobre este caso (um silêncio, aliás, estranho). E bastava-lhe utilizar o seu espaço de opinião no PÚBLICO tal como eu utilizo o meu, dispensando um colega de redacção de a ouvir como fonte autorizada.

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