Utentes em cadeira de rodas lutam pelo Centro de Reabilitação do Sul

A indefinição na gestão, o corte de financiamentos e o abandono dos profissionais levaram à perda de credenciação de uma das mais prestigiadas unidades de saúde no Algarve.

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VASCO CELIO
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Elsa Ramos, paraplégica, luta para que o Centro de Medicina Física e Reabilitação do Sul (CMFRS) volte a ser aquilo que já foi — uma unidade de saúde de referência a nível internacional. Não está sozinha. Criou uma associação de utentes e amigos a que chamou “Movimento Determinante” para exigir o direito à assistência em condições dignas. A instituição tem uma capacidade de internamento para 54 camas mas só 19 é que estão a ser usadas por falta de pessoal. “Cheguei a ter que trazer de casa o meu tratamento (ampolas), não havia quase nada”, comenta.

Esta antiga fotógrafa desloca-se em cadeira de rodas desde há 14 anos. “O carro levantou voo, arrancou um poste e quem viu não acreditava que iria sobreviver”, recorda. O acidente deu-se frente à sua casa, na Luz de Tavira, numa passagem de nível sem guarda. A partir dali, diz, teve “de aprender tudo, foi uma nova vida que começou”. Uma das coisas que teve de abdicar foi do sonho que a acompanha desde infância: “O meu pai ofereceu-me uma máquina fotográfica, quando tinha dez anos, e eu queria ser fotógrafa de guerra”.

Quando se deu o acidente que a atirou para uma cadeira de rodas, Elsa Ramos trabalhava como fotógrafa de casamentos e baptizad0s, na “Foto Andrade”, em Tavira. “Queria juntar dinheiro para ir lá para fora, e a profissão nessa altura era rentável”. Ainda não tinha chegado a era do digital. “O meu sonho era conseguir, como Sebastião Salgado faz, contar numa foto uma história de guerra”. Porém, a lesão que sofreu na medula não vai permitir correr o mundo em busca de imagens que mostrem o lado desumano nos cenários de destruição. “Estava a juntar dinheiro para ir para uma escola em Londres, onde o premiado fotógrafo brasileiro também estudou e, de repente, a vida muda”.

O gosto pela fotografia continua presente, embora os movimentos estejam condicionados. “Podes voltar a trabalhar mas não na profissão que tinhas — não voltas a andar”, disse-lhe o médico no Hospital de São José, em Lisboa, depois de ter estado mais de 20 dias internada nos cuidados intensivos. O choque deixou-a suspensa, perdida no espaço e no tempo. “Tive a ajuda dos meus pais e amigos, isso fez-me olhar em frente”.

Durante três anos, a linha do caminho-de-ferro, diante da janela do seu quarto onde passava muitos dos seus dias, representou o “fim da linha” de uma carreira profissional interrompida. “O som da passagem do comboio ficou-me gravado na cabeça”, diz.

A sensibilidade que recuperou — pouca, da cintura para baixo — deu-se durante os quatro meses em que esteve internada no Centro de Medicina e Reabilitação da Região Centro Rovisco Pais — Tocha. O seu nome ainda esteve incluído na lista para entrar num programa de intervenção com células estaminais mas os médicos não aconselharam: “O tratamento deu-me alguma recuperação de sensibilidade, não se justificava correr o risco de paralisação total”.

Quando abriu o Centro de Medicina e Reabilitação do Sul em São Brás de Alportel, há 11 anos, com uma direcção clínica que integrava especialistas vindo da Tocha foi uma das primeiras utentes. “Fui uma espécie de cobaia. A direcção clínica traçou um programa que colocou este centro ao nível do melhor que se faz no mundo”, elogia. O objectivo foi alcançado. O CMRS foi acreditado pela CARF, uma entidade independente dos Estados Unidos de certificação de unidades de reabilitação. Mas agora “perdeu todas as certificações”, lamenta. 

Os profissionais, por falta de perspectiva de carreira, procuram alternativa de trabalho noutras partes do país. O Algarve continua a ser uma região que não atrai especialistas no sector da saúde — os concursos de vagas que abrem ficam, geralmente, desertos.

O Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA), que tem actualmente a tutela do CMFRS, anunciou para a primeira quinzena de Maio a reabertura de 17 camas e a contratação de 11 enfermeiros. A lista de espera de utentes, a aguardar por tratamentos, ultrapassa a centena.

No passado dia 13, o “Movimento Determinante” organizou uma manifestação à porta do Centro, a que se associou o próprio presidente da câmara, Vítor Guerreiro, socialista. “O segundo piso do edifício continua encerrado”, aponta Elsa Ramos, inconformada com o estado de degradação a que chegou o Serviço Nacional de Saúde na região. “Pela primeira vez desde Outubro de 2013 [quando a Administração Regional de Saúde (ARS) assumiu a gestão], verifico que alguma coisa vai mudar para melhor”, refere o autarca, adiantando: “Tenho a garantia [do Ministério da Saúde] de que em Outubro estará a funcionar em pleno”.

Elsa Ramos confirma que o centro “começou a cair quando a ARS pegou nisto". "No primeiro ano ainda foi mais ou menos, mas depois tem vindo sempre a descer.”

Ninguém desiste de lutar

É com isto que Elsa Ramos não se conforma. É verdade que o acidente lhe virou a vida do avesso. “Só sentia os joelhos e os pés”, recorda. A fisioterapia, durante os primeiros três anos, trouxe-lhe melhorias mas acabaria por confirmar-se o primeiro diagnóstico. “Não voltas a andar”. A frase, quando a pronuncia, ainda hoje lhe faz mudar a expressão, num rosto de sorriso aberto.

A utente, de 42 anos, não passa despercebida por uma razão simples: “Não sou pessoa de ver e ficar calada, digo logo o que penso”. Por isso, há cerca de três anos decidiu formar um “comité de utentes” que não teve eco junto das entidades oficiais — carecia de enquadramento institucional. Não desistiu. No passado mês de Agosto, finalmente, surgiu o “Movimento Determinante”, uma associação que tem como fundadores três pessoas que andam em cadeiras, um fisioterapeuta e uma mãe, Alice Fernandes — cuidadora da filha há 20 anos — e Elsa Ramos a eleita presidente. “Sou um pouco desbocada, a presidente tem de ser mais comedida”, observa, a justificar a liderança.

Os tratamentos de fisioterapia não terminaram, nem se prevê que possa vir a prescindir de apoio nesta área “Tenho uma contractura crónica, no trapézio esquerdo, adquirida nos tempos em que praticava natação de competição — o acidente agravou a situação porque a clavícula e omoplata também ficaram afectadas”, justifica.

Acompanhou os altos e baixos da instituição enquanto utente permanente. “A falta de meios chegaram ao ponto de ter que trazer para o ambulatório os meus tratamentos (ampolas)”, diz. Por isso, não admira que veja com grandes expectativas as promessas de melhorias que foram feitas.

“A presidente do CHUA, Ana Paula Gonçalves, garantiu à associação que no princípio de Maio as coisas iam mudar, mas só nos atendeu depois de termos marcado uma manifestação”, sublinha.

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