As memórias de Peniche entre a brutalidade e a poesia

Daniel Rocha
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Daniel Rocha

As paredes grossas, os muros altos, as ameias e os postos de vigia da Fortaleza de Peniche foram feitos para guardar o país das ameaças externas. Mas, numa dessas terríveis singularidades do destino, acabaram por enclausurar ideias que o Estado Novo encarava como uma ameaça interna. O forte tinha tudo para resistir aos canhões, aos assaltos ou aos cercos. Mas as ideias fazem parte da categoria das coisas voláteis, escapam-se entre as grades, fogem pelas janelas e despertam em qualquer lado esse eterno e irreprimível desejo dos humanos pela liberdade. A Fortaleza de Peniche foi entre 1934 e 1974 um dos símbolos da repressão salazarista às dissidências democráticas de vária índole, mas o seu poder nem sempre foi eficaz na clausura dos corpos e ainda menos no encarceramento do pensamento. É um lugar do passado negro do salazarismo, e por isso é também um esteio que nos faz olhar para a frente.

Podemos imaginar a vida para lá da porta de entrada solene e imponente, nos edifícios gigantescos com janelas gradeadas, nas celas bolorentas, frias e inóspitas, no pátio onde ao menos se podia sentir a proximidade do mar. Seria essa proximidade uma forma de exaltar o verso de Baudelaire, para quem o homem livre sempre amará o mar? Ou o marulhar e o odor a sal e iodo serviriam apenas para reforçar a penitência do destino de homens condenados apenas por pensarem por si, por pensarem diferente, por recusarem um regime castrador, persecutório e punitivo? Duas perguntas que, seja qual for a resposta que obtêm, acabam por se esvaziar nas paredes despidas de emoção, nos ferros das janelas que travavam a esperança, ou nesse mar tão perto e tão longe que apenas podia revelar um mundo que, lá fora, continuava a viver o ciclo das marés, as fases da lua, as estações do ano ou a alimentar a crença em dias sem delitos de opinião.

As fotografias que mostram muitos anos depois esses lugares talhados para desapossarem a alma e aviltarem a necessidade de pensar e de agir são magníficos repositórios de uma memória que, a cada ano que passa, se vai erodindo nas gerações de portugueses para os quais o 25 de Abril é apenas um feriado e o salazarismo um arcaísmo da história do Portugal contemporâneo. A fuga de Álvaro Cunhal e os seus companheiros nos primeiros dias de Janeiro de 1960, o envolvimento do guarda que pôs o sentinela a dormir com uma dose de clorofórmio, as memórias da clandestinidade, do antifascismo, da coragem, das ideias, de todas as ideias incluindo as ideias erradas, da crença convicta em causas, do sentimento de urgência de um outro futuro, arriscam-se a perder a a aura real da memória para entrarem nos nevoeiros que envolvem as lendas.

Ver estas fotografias, imaginar esse Portugal que mudou em 1974, pensar nos presos políticos que habitaram à força aqueles lugares, faz-nos reencontrar com esse tempo e com esse país onde havia homens e mulheres dispostos a sofrer em nome de uma causa. Hoje, num país democrático e livre, essa luta e esse espírito deixaram de fazer sentido. Resta-nos então imaginar, tentar um regresso a esse tempo, pensar como seria viver ali e resistir para que de corpos aprisionados pudessem sair ideias. Desfeita a ignóbil tentativa de fazer das celas quartos para turistas, a Fortaleza de Peniche resiste assim como um testemunho. As fotografias do Daniel Rocha, belas no seu dramatismo, duras nas memórias que invocam ou intensas no sentimento que suscitam, têm também aquele lado poético que afinal acrescenta esperança e presente a esse legado do passado.

Manuel Carvalho

 

 

 

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