Manter a excepção, fugir à regra

Penso que o caminho para o PS é fugir à regra da tentação centrista e manter a excepção da convergência à esquerda.

Sempre que se aproxima um congresso do PS, eu relembro o primeiro realizado na legalidade, na Aula Magna da Reitoria, em Dezembro de 1974. A vitória de Manuel Serra, então próximo do vanguardismo político-militar, parecia certa. Salgado Zenha, que presidia, pediu-me para intervir. Ao longo da vida fiz muitos discursos, mas aquele foi o que teve mais consequências no futuro do PS e do País. Segundo o próprio Mário Soares, foi decisivo para a sua vitória; impediu a satelização do partido; afirmou a sua autonomia estratégica e permitiu que os socialistas, sob a liderança de Soares e Zenha, pudessem conduzir, em conjugação com os militares do “Grupo dos Nove”, o combate pelo triunfo da Democracia em Portugal. Isso não me confere o direito a reivindicar-me do código genético do PS, que, às vezes, já não sei qual é. Ou melhor, sei: é o da Liberdade.

Data dessa época a frase mais importante de Mário Soares: “A Liberdade é um valor em si mesmo revolucionário.” Liberdade entendida como “motor” da História para a construção de mais igualdade, mais Democracia, mais direitos sociais inseparáveis dos direitos políticos. Ou como então se dizia: nem Liberdade sem Socialismo, nem Socialismo sem Liberdade. O que hoje poderia traduzir-se por: nem Liberdade sem igualdade, nem igualdade sem Liberdade. Sim, creio que é esta a matriz do PS.

O meu amigo António Arnaut está com certeza de acordo. E António Costa também. Foi por certo esta matriz que o levou a romper com o espartilho do arco da governação, essa armadilha que transformou as eleições legislativas em eleição directa do primeiro-ministro, fazendo da nossa Democracia uma Democracia mutilada de uma parte do seu eleitorado e colocando o PS na dependência da direita, no caso de não obter maioria absoluta, o que só aconteceu uma vez.

Ora nas últimas eleições, a esquerda, em maioria no Parlamento, decidiu-se finalmente a fazer um acordo para governar. A Democracia deixou de estar manca. O Parlamento recuperou a sua centralidade. Com a formação da Geringonça, Portugal tornou-se uma excepção na Europa. É o único país com um Governo Socialista apoiado por três partidos de esquerda, o PCP, o BE e o PEV. Foi o que permitiu mudar a política, repor direitos e rendimentos, reduzir o défice, aumentar o emprego, promover o crescimento da economia, aumentar o salário mínimo, descongelar as carreiras da Função Pública, virar, enfim, a triste página da austeridade.

Mas mais: com esta solução, o PS libertou-se do pântano central que tem gerado o crescimento do populismo e o quase desaparecimento dos partidos tradicionais, nomeadamente os da família socialista na Europa. Mas também nos EUA. A vitória de Trump nasceu da crise do sistema e do Partido Democrático. Centrão é hoje sinónimo de crise política e de emergência da extrema-direita.

É certo que, em Portugal, esta ainda não tem um partido político significativo. Mas há nas redes sociais um populismo inorgânico à espera de uma crise política do sistema, que nasceria inevitavelmente de uma inversão da actual política ou da viragem para um novo Bloco Central. Por isso, o único caminho, não só para o PS mas para o futuro de uma Democracia socialmente estável, é manter e reforçar a convergência das esquerdas e a aliança parlamentar que sustenta um governo que é visto, lá fora, como uma excepção política na Europa e como o último governo da esquerda democrática.

Já não tenho qualquer função no PS. Tenho apenas memórias e vivência. Por isso, penso que o caminho para o PS é fugir à regra da tentação centrista e manter a excepção da convergência à esquerda.

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