O Tremor foi uma uma história feliz e quer contaminar o resto do ano

Cinco edições depois, o festival que quis injectar vida nos Açores, a partir de Ponta Delgada, fidelizou um público e um território. Atingida a fasquia dos 1500 bilhetes vendidos, o Tremor quer agora tornar-se uma presença de todos os dias.

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Muitos não esquecerão a actuação de Mal Devisa na Igreja do Colégio CARLOS BRUM MELO

Há cinco anos, Portugal estava mergulhado na depressão. Em Ponta Delgada, na ilha de São Miguel, nos Açores, os sintomas estavam lá. O comércio falia. Havia edifícios abandonados. E o centro da cidade parecia um lugar fantasma a partir das três da tarde. Quem o diz é António Pedro Lopes, um dos principais rostos do festival Tremor. “E foi então, num misto de ingenuidade e exaltação, que decidimos que era preciso injectar vida nos lugares que ainda resistiam. Achámos que isto podia ser importante.”

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Há cinco anos, Portugal estava mergulhado na depressão. Em Ponta Delgada, na ilha de São Miguel, nos Açores, os sintomas estavam lá. O comércio falia. Havia edifícios abandonados. E o centro da cidade parecia um lugar fantasma a partir das três da tarde. Quem o diz é António Pedro Lopes, um dos principais rostos do festival Tremor. “E foi então, num misto de ingenuidade e exaltação, que decidimos que era preciso injectar vida nos lugares que ainda resistiam. Achámos que isto podia ser importante.”

Cinco edições depois, a aposta está ganha. É evidente que o renascer do centro da cidade se deveu a uma conjugação de factores (económicos, sociais e políticos), mas o Tremor foi congregador e ao mesmo tempo prenunciador do papel que a cultura pode ter no fazer acontecer. Neste sábado que foi o último dia do festival, tarde e noite fora, todos os locais (lojas, restaurantes, bares, auditórios, igrejas, garagens ou salas como o Coliseu) serviram para se ouvir música, com imensas pessoas a deambularem entre eles pelas ruas.

“Foi uma história feliz, a desta edição” afirma António, num balanço do que se viveu nos últimos dias. “Vendemos 1500 bilhetes, que é a lotação da sala maior, o Coliseu, e que nos serve de referência. Não queremos ir além disso. Metade do público veio de fora dos Açores, mas o mais importante é o público daqui a expandir-se, seja o adolescente que descobriu aqui uma janela para ver o mundo e ter outros estímulos, ou a senhora mais velha que vem ver uma coisa específica." A relação com o território e com a comunidade, observa, renova-se a cada ano: "Este ano trabalhámos com uma comunidade de surdos ou com uma banda filarmónica, por exemplo, e continuámos a inventar, como essa loucura de termos um roteiro de 14 horas em que as pessoas entram num avião sem saberem ao que vão, ao encontro da paisagem, dos sabores e das pessoas de Santa Maria, ao mesmo tempo que têm um concerto no coreto, com a população de Vila do Porto a comparecer. Mais do que estarmos dependentes do cenário incrível que é os Açores, temos de acreditar cada vez mais na nossa imaginação.”

É isso. Claro que as condições naturais dos Açores ajudam ao êxito da operação Tremor. Mas ainda mais relevante é o engenho na criação de experiências em que a fruição musical se une à vivência da natureza. Um cartaz em que a descoberta de novas sonoridades é o elemento chave. E por último a escala humana do acontecimento, rejeitando a massificação, e a sua ligação com a comunidade, que faz questão de integrar no evento, e com o mundo. “O que marca identidade do festival é esse diálogo com os lugares, as instâncias, os promotores, a sociedade civil e as pessoas da terra, e com os lugares físicos, sejam comerciais, culturais, patrimoniais ou naturais.”

Contrastes

Hoje existe uma relação de confiança com quem organiza. Uma fidelização. Mesmo quando não se sabe muito bem ao que se vai, vai-se. E isso tanto vale para as experiências que decorrem durante a semana como para a programação musical. Por exemplo, a americana Mal Devisa, que tocou na Igreja do Colégio, ao final do dia de sábado: poucos a conheceriam, mas muitos dos que a ouviram nunca mais a esquecerão. Naquele imponente espaço, uma mulher apenas munida de um vozeirão e de um dedilhar minimalista de guitarra, algures entre o blues, o jazz, a folk e a poesia sofrida falada. De repente, foi como se o espírito de Nina Simone pairasse pelo espaço, num misto de gravidade e honestidade emocional que apenas algumas vozes conseguem transportar. Isso já era audível no álbum de estreia, Kiid (2016), mas ali transformou-se em experiência mágica.

A oferta musical do último dia é exaustiva. É preciso fazer opções. E estar disponível para a descoberta. Os contrastes são inúmeros. Podemos entrar no Solar da Graça e deparar-nos com uma sessão de punk catártico pelos portugueses The Parkinsons, com a estridência da música e a performance suada dos intervenientes a contagiarem toda a gente, como logo de seguida embarcar na viagem teatralizada para voz e piano da americana Baby Dee, figura muito conhecida do universo transgénero nova-iorquino, com um auditório atento a sorver cada nota e cada palavra num registo muito intimista.

Mais contrastes? Assistir a uma apresentação emocionante de músicos açorianos em parceria com a Associação de Surdos da Ilha de São Miguel (ASISM), que meteu a colaboração interactiva do público, e depois entrar no bar Raiz e apanhar com um trio espanhol de mascarados, os Zulu Zulu, que fizeram da sua excelente actuação uma folia psicadélica dançante, com uma música ritualista que deve tanto aos Animal Collective mais lúdicos como aos Vampire Weekend mais africanizados, num todo exuberante.

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A actuação da Associação de Surdos da Ilha de São Miguel meteu a colaboração do público CARLOS BRUM MELO

No envolvente espaço do Ateneu Comercial evoluíram os dinamarqueses Liima, que apresentaram as canções mais rendilhadas do seu segundo álbum, 1982. A pop electrónica dançante que era a marca do primeiro registo mostrou-se agora alvo de incursões mais desviantes, com a voz e presença cénica do lisboeta Casper Clausen e o som retrofuturista a exporem melancolia ou transcendência, por vezes no espaço de uma só canção.

Contrastes é o que também há na música dos portugueses Dead Combo, provavelmente o nome mais conhecido e transversal do cartaz, que continuam a mostrar uma mestria invejável na forma como a música, ora soturna, ora gingona, ora quase catártica, se coaduna com o jogo cénico, a precisão milimétrica e o rasgo espontâneo, num todo em que o virtuosismo dos músicos (Tó Trips e Pedro Gonçalves, desta vez acompanhados pelo baterista Alexandre Frazão) é vital.

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Os Dead Combo contaram desta vez com Alexandre Frazão na bateria CARLOS BRUM MELO

Qualquer coisa em potência

Se os Dead Combo são uma realidade firmada, como se viu pela reacção entusiasta da assistência, os também portugueses Ermo poderão vir a sê-lo num futuro próximo, pelo rasto de entusiasmo que o segundo álbum, Lo-Fi Moda (2017), vai deixando. É verdade que a sua sonoridade, uma electrónica fragmentada que é capaz de ser lúdica, mas que é acima de tudo densa, não é para massas, mas o culto é um facto, como se constatou pelas reacções que foram despoletando, numa actuação segura e conseguida.

Muito bons foram os brasileiros Boogarins, no Coliseu. Um dia antes havíamos visto a sua prestação no coreto de Vila do Porto, em Santa Maria, onde se empenharam e divertiram à séria. Mas ali foi naturalmente diferente. Música com uma linhagem definida – rock em conexão psicadélica – mas que não se rege por regras, procurando novos ângulos na forma como guitarras e ritmo discorrem de forma expansiva ou incisiva, ao mesmo tempo que se deixam cobrir por climas sonhadores ou dançantes. 

Com quatro álbuns, os brasileiros têm corrido mundo e não parece que fiquem por aqui. Quem sabe, talvez venham a ser um exemplo para alguns músicos açorianos. É que o Tremor não se quer esgotar nos dias em que acontece. "O Tremor é todo o ano. Ele não acaba aqui. Acreditamos que é possível criar novas referências, novas vozes, que falem sobre o que é estar aqui, ser insular. Queremos que os artistas daqui ganhem espaço. É preciso estimulá-los a dialogarem de forma multidisciplinar com outros artistas, percebendo como se comunicam e se posicionam.” Artistas como Goldshake, da ilha Terceira, que vimos durante a tarde a debitar rimas numa loja, perante uma assistência transgeracional que se balançava ao ritmo do hip-hop, ou como o rapper Fugitivo, de Angra do Heroísmo, que actuou no andar de cima do restaurante A Tasca, enquanto em baixo ainda havia comensais.

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O rapper Goldshake debitou rimas numa loja perante uma audiência transgeracional YOUR DANCE INSANE

“Quando começámos parecia que à nossa volta só havia cinco ou seis artistas açorianos, mas afinal nos últimos cinco anos programámos 40”, conta António Pedro Lopes. “E não são apenas os artistas, é também o público, está mais refinado, curioso, disponível e aberto. Sinto-me orgulhoso. O lastro existe. Falta ainda a regularidade. A cultura é todos os dias.” Muito já foi feito.

Outro tanto está por fazer. Como diz António Pedro Lopes, “há aqui qualquer coisa em potência que precisa ainda de rebentar e saltar cá para fora”. Quem sabe se não será para o ano?

O PÚBLICO viajou com o apoio da Azores Airlines, da Visitazores e do Neat Hotel Avenida