Black Panther: o conto de fadas anti-revolução

“You will not be able to stay home, brother (…) Because the revolution will not be televised, The revolution will be no re-run brothers, The revolution will be live” (Gil Scott-Heron). Dizia o trailer do filme numa mentira bem contada. Não houve revolução. Tudo é política. Num mundo que transpira a supremacia branca, racismo estrutural, brutalidade policial, que se debate com as marcas da escravatura e colonialismo (admissão e reparações), um filme com um super-herói e elenco negro obriga a um nível de exigência política, moral, elevado e inequívoco. Existem vários caminhos para criar um blockbuster — um feito banal, mas são raras as oportunidades para incitar revoluções. Porém, Black Panther escolheu o conto de fadas e vendeu a revolução para financiar um blockbuster.

Wakanda é um esplendor na tela — a simbiose entre o berço da humanidade e o que se sonha para o futuro. Mas é isolacionista e nacionalista. Parafraseando Joe Robert Cole, co-argumentista, nunca é conquistada, colonizada ou ultrapassada. Instinto de protecção, pensando no percurso da História? Impensável numa narrativa negra que se diz a salvação do povo negro. Um país nacionalista, com políticas restritivas em relação a refugiados, imigrantes africanos, que nunca auxiliaram os países vizinhos com historiais de colonialismo e escravatura. Claro que foi fácil criar sentimentos ambíguos no público negro. Quem é que não gostava, em particular entre a diáspora, de viver num país africano com todas as riquezas naturais, tecnológicas, sem um passado e presente de opressão, intocável? Dizer, sem medo, “We are home”? Mas Wakanda não é o lar do povo negro. É um país privilegiado, elitista, que tem fobia à pobreza, ao confronto, a ir à luta, a defender os seus. É uma ameaça aos pilares da negritude. Desconhecendo o que é opressão, recusa-se a participar na libertação. Infiltra-se na diáspora mas apenas para garantir que não é infectado pela opressão. Porém, essa mesma diáspora, de muitas formas, dá liberdade a Wakanda. Serviu de isco e distracção, ao longo dos séculos, para os opressores, e, ao mesmo tempo, não é um fardo para Wakanda. Resumindo, “If you are neutral in situations of injustice, you have chosen the side of the oppressor” (Desmond Tutu).

Black Panther, baseado em livros da Marvel, apresentava vários rumos, e Ryan Coogler, o realizador, escolheu um, mesmo tendo liberdade criativa. Mais, estando o número de leitores de Black Panther ainda em crescimento, não estava condicionado por uma legião de puristas reclamando pelas eventuais mudanças na narrativa. As decisões tomadas manifestaram a mensagem que pretendeu transmitir. A ameaça de Wakanda era um homem negro comum: Killmonger (Michael B. Jordan), primo de T’Challa (Chadwick Boseman), amoral, ganancioso, assassino, sociopata, o negro radical, com os vícios do colonizador. Quer oprimir os opressores e põe em risco a intocável grandeza e realeza Wakandana. Abandonado pela família do pai, Killmonger preparou-se a vida inteira para libertar o seu povo negro, oprimido pelo mundo inteiro. Por direito, reclama o trono de Wakanda e usaria o seu poder bélico para armar as outras nações africanas. Contudo, é considerado afro-americano extremista, com ideias revolucionárias radicais. Coogler e Joe R. Cole (co-argumentista) optam, claramente, por retratar Killmonger como “a ameaça”. É um mercenário. Avisa Everett Ross, agente da CIA (Martin Freeman) e aliado de Wakanda: “He’s one of ours”. Como assim? Um produto do imperialismo americano, do colonialismo, das acções da CIA durante a Guerra Fria e os assassinatos de líderes africanos, mais as insurgências clandestinas em países africanos? Ross, que é introduzido no filme como comprador de um artefacto ilegal Wakandano, não só vê a sua vida salva em Wakanda como rapidamente passa a ilustre convidado, terminando como um herói. E o afro-americano morre como mero vilão. Killmonger merecia sobreviver, ou ser retratado com mais conteúdo, mais ideais, mais historial. Numa só palavra: humanidade. Mas, para isso, teria de coexistir um ideal de revolução. E se Black Panther é negro, o financiamento do filme é branco, os “pais” Black Panther são brancos, que o criaram na chamada “Jungle Action”. Será esta a grande condição para a existência de Black Panther: que fique na selva, no paradigma branco, camuflado pelo desespero negro de representatividade?

Num mundo em que uma criança afro-americana com uma pistola de brincar é brutalmente assassinada por um polícia, Black Panther decide que a maior ameaça para o seu reino idílico é um afro-americano com ideais revolucionários e libertários. Black Panther mata qualquer oportunidade de revolução ou libertação. Com o seu final decepcionante, a abertura de um centro num bairro pobre iguala os gestos dos colonizadores, estrategicamente infrutíferos, e com uma distância higiénica desprezível. O gesto da aliança formada com os países opressores em nada irá compensar, proteger e enriquecer os povos africanos e a diáspora oprimida. Passa uma mensagem de conforto ao público branco e silencia os oprimidos. O clima mundial é de tensão, as ruas estão manchadas de sangue negro, os mares cobertos com cadáveres negros, as ruas e covis com crianças traficadas sexualmente. As pessoas negras, quando denunciam injustiças, são penalizadas de forma dura. Vivemos num mundo antinegritude. Black Panther nem tocou em racismo estrutural. Foram cautelosos, não arriscaram nada. E resumiram tudo no fim: “Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.”

Confirma-se. Não houve motivo para desassossego. Está tudo na mesma.

*Activista, Antropóloga, Investigadora

 

Sugerir correcção
Ler 1 comentários