Memória do Sião e dos reinos que ali houve

O Sião, o grande país do Oriente que firmou com Portugal, há 500 anos, um tratado de amizade, nasceu de outros três reinos. Um itinerário através das marcas históricas que originaram a moderna Tailândia, de Sokhuthai a Ayutthaya e a Thonburi.

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Humberto Lopes

O Chao Phraya é um rio largo de águas. E de História. Nas voltas e reviravoltas que dá ao passar pela capital da Tailândia, é o que vem sendo desde a nascente e desde os alicerces do(s) reino(s) de que foi sempre a grande via dorsal de comunicação: um rio muito dado a meandros, a curvas e contracurvas. Mas o Chao Phraya foi mais do que isso, foi o príncipe dos rios do Sião, o maior de todos os cursos de água do reino, dos reinos que foram o berço da actual Tailândia.

Nada de outro mundo pareceria uma narrativa na primeira pessoa, uma narrativa em que o rio se fizesse narrador, um contador de histórias, uma testemunha à queima-roupa das vicissitudes históricas, das grandezas e infortúnios desses reinos. “Eu, o Chao Phraya, arrasto comigo a memória turva de inúmeras batalhas, de feridas lavradas por armas birmanesas, de cortejos fluviais de barcaças reais engalanadas de ouro, do sagrado elefante branco em banhos rituais, do esplendor de Ayutthaya e do seu pródigo comércio, dos mercadores estrangeiros chegando de paragens distantes balbuciando insólitas línguas, de águas transviadas dos meandros e obrigadas pela engenharia humana a correr a direito para abreviar a distância até ao golfo.”

Por tais memórias se vê quanto o Chao Phraya modelou, discreto mas firme, a vida à sua volta — e até mesmo a de gente remota a muitíssimas léguas de distância —, o entendimento e a acção de reis e plebeus, na guerra e na paz. Poderoso rio! Não defendia Unamuno que “um rio é algo que tem uma forte e marcada personalidade, é algo com fisionomia e vida própria”? Nada disto tem mistério. Há muito que os historiadores se lembraram de, com maior ou menor ênfase, iluminar as condições materiais de existência das sociedades humanas — e entre elas se incluem os rios, essas correntezas de águas, de mercadorias e de ideias. Os soberanos siameses fundaram cidades — Sokhuthai, Ayutthaya, Thonburi — à beira de rios (do Chao Phraya ou dos seus afluentes) — e a partir daí estenderam reinos e reinados, sem suspeitarem em que líquidas mãos estava o arbítrio, ou pelo menos uma parte dele. Com tanta acuidade acrescentou Unamuno, nas suas novecentistas notas de viagem por terras ibéricas: “Na verdade os rios podem mais do que os reis.”

O Chao Phraya não foi, enfim, apenas uma testemunha privilegiada de momentos históricos decisivos da vida dos três reinos que antecederam a actual Tailândia. Foi um protagonista das histórias da História do país. Em cada um dos lugares em que se originou uma parte do Sião e da moderna Tailândia, as suas águas corriam.

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Humberto Lopes

Sokhuthai, a primeira capital

Ubon Ratchathani fica muito longe das planícies centrais da Tailândia e da bacia hidrográfica do Chao Phraya. É uma cidade com um expressivo potencial para aliciar os viajantes que passam em vol d’oiseau a caminho de outros destinos. Entre as singularidades que detém, está a arquitectura de alguns belos templos, a acusar influência dos santuários budistas do vizinho Laos. A região, no Nordeste da Tailândia, encravada entre o Laos e o Camboja, chegou a fazer parte do império khmer e conserva por essa razão algumas marcas arquitectónicas em edificações que fazem lembrar as de Angkor. Conclusão: se o que se demanda é a quintessência da cultura siamesa, teremos que orientar o rumo para as margens do Chao Phraya e dos seus afluentes.

Depois de uma longa jornada nocturna, chego a Phitsnanulok pouco antes do amanhecer. Da estação rodoviária não tarda a partir um minibus cheio de gente ensonada. Hora e meia depois, com o calor que antecede a monção a despertar bem cedo, desembarcamos na parte “nova” de Sokhuthai. Estamos a uma dúzia de quilómetros do parque arqueológico, numa cidade viva, modesta capital de província mas muito animada e com uma convidativa oferta de comida de rua, notável pela abundância de especialidades locais. À noite, ao longo dos passeios da Thanon Jarodvithi Thong, mesmo junto à ponte fluvial, fumaçam cozinhas de rua e a atmosfera é de festim, como é uso em tantos quarteirões orientais à hora das refeições. O rio Yom passa ao lado e corre para o encontro com as águas do Nan: os dois são os principais afluentes do Chao Phraya e encontrar-se-ão mais adiante.

O Sokhuthai Historical Park foi criado há trinta anos, em 1988, depois de uma morosa (começou nos anos 1950) operação de restauro do acervo arqueológico da primeira capital do Sião, fundada no lugar de um anterior assentamento do império khmer. Estupas, templos, fossos povoados por flores de lótus, grandes imagens de budas sereníssimos: estamos perante algumas das construções e esculturas mais antigas da era siamesa. O Wat Mahathat é paradigmático do estilo de Sukhothai, com o seu chedi (a palavra tailandesa para estupa) coroado por um botão de flor de lótus. Continua a ser local de culto — como tantos destes templos antigos — e os crentes que ali dão as três voltas rituais crêem que no seu interior estão guardadas cinzas de Buda trazidas do Sri Lanka. Os outros chedis deste templo mostram como o budismo integrou estilos diversos, do Sri Lanka, do reino Lanna e da Birmânia.

Se faltar tempo para uma visita integral (o parque tem cerca 70 km2), há pelo menos dois templos a abarcar no itinerário, o Wat Si Chum, onde um enorme Buda exemplifica um modo local de representação destas imagens, um tanto estilizadas, e o Wat Sawa, um primitivo templo hindu, provavelmente com mil anos, herança da arquitectura khmer.

Tal como o domínio Lanna, que teve sede em Chiang Mai, houve outros pequenos e breves reinos, como Chiang Saen e Pha Yao, também no Norte, fundados pela população thai emigrada da China. Mas, pela dimensão e relevância histórica, é a Sokhuthai que cabe o título de primeira capital do Sião. Há certamente algo de convenção dizer que a Tailândia começou aqui, que foi inventada em Sukhothai. A ideia de atribuir a um soberano, o rei Ramkamhaeng, a autoria do alfabeto e outras dimensões da cultura do país é argamassa de lenda e faz parte da construção de um discurso nacionalista. A consolidação de uma identidade tailandesa terá sido um processo lento, mas muito do que a Tailândia é hoje — em termos culturais, religiosos, civilizacionais — deve-se às realizações desse breve período em que a identidade siamesa se começou a compor.

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Com essa lente, esse olhar, nos dispomos a palmilhar a cidade — ou as cidades. Porque é um vastíssimo conjunto de edificações que se espalham por uma área imensa, se decidirmos incluir na visita os recintos de Kamphaeng Phet e Si Satchanalai — este último encerra impressivos vestígios de templos khmer do século XI. Não foi necessário chegar diante da imagem de um Buda com seis metros de altura ou de um pequeno templo de Chaliang em plena cerimónia de culto para um íntimo sentimento de gratificação. Estes dois recintos ficam algo distantes da área histórica de Sokhuthai e bem longe da multidão: mesmo se não temos aqui templos como os de Bayon ou de Angkor Wat, imagine-se a dádiva de andarilhar em solidão entre arvoredos e arvoredos em busca de velhas ruínas khmer e siamesas.

O sortilégio de Ayutthaya

De novo em Phitsanulok, a Passiloco das crónicas portuguesas quinhentistas, tomo o Rapid para Ayutthaya. Não é dos comboios mais ligeiros e dos mais confortáveis, mas é suficientemente cómodo e permite, a um preço irrisório, fazer grandes viagens num país que tem uma área sensivelmente equivalente à de Espanha. Apesar da oferta tailandesa cada vez mais sofisticada de serviços de transporte rodoviário — com moderníssimos autocarros equipados com beliches e outros aconchegos —, viajar de comboio continua a ser a melhor opção e não apenas em termos de segurança e de custo: com uma qualidade muito próxima da definida pelos padrões europeus, a rede ferroviária da Tailândia cobre praticamente todo país e oferece ao viajante jornadas por paisagens muito mais interessantes do que as que consentem os percursos do transporte rodoviário. E, the last but not the least, com a vantagem adicional de favorecer a imersão e o contacto com a vida local.

Chego a meio da tarde, a tempo de deixar a bagagem na sempre hospitaleira Good Luck Guesthouse, dar uma volta pela margem do rio Prasak e reavivar a memória dos sabores da gastronomia muito particular daquela que foi a capital do reino do Sião nos seus anos de maior glória. Para o mercado de comida Hua Ro são só mais uns passos pela margem em direcção ao canal Muang.

O poder de Sokhuthai desmoronou-se com emergência de Ayutthaya, cidade fundada no século XIV e destinada a transformar-se na mais esplendorosa metrópole oriental de então. Durante quatro séculos não teria em todo o Sudeste Asiático rival à sua altura. Antes do avanço fatal dos birmaneses, em 1767, Ayutthaya era o grande centro de comércio da região, um entreposto por onde transitavam mercadorias das mais díspares proveniências, do Japão às Molucas, da China à Índia, e prontas a seguir para todos os destinos, inclusive até à longínqua Europa.

Teria provavelmente mais de quinhentos mil habitantes e um desenvolvimento e organização urbana capazes de fazer sombra às urbes europeias da época. Cercada por uma extensa muralha com cinco metros de altura, acolhia um ambiente cosmopolita em que conviviam indianos, árabes, malaios, chineses, japoneses, persas, portugueses, holandeses e khmers, entre outras nacionalidades.

O nosso Fernão Lopes de Castanheda deu conta do deslumbramento lusitano à vista da capital do Sião, “metida pelo sertão trinta léguas ao longo de um rio tão largo e tão fundo que nadam nele juncos carregados”. Castanheda anota a ampla e proveitosa navegabilidade do Chao Phraya, em lugar distante umas trinta léguas do Golfo da Tailândia, mas a rica descrição centra-se sobretudo nos prodígios urbanos de Ayutthaya: “É cidade muito grande e populosa, e de ricos e formosos edifícios, e de mui grosso trato, abastada em grande avondança de muitos mantimentos; é o principal assento dos reis deste reino, e têm aqui uns riquíssimos paços e mui deleitosos, com jardins de diverso arvoredo e de muitos géneros de ervas cheirosas, e de muitos canos de água, tanques muito aprazíveis, e casas douradas de dentro e de fora.” Foi tal panorama que encontrou Duarte Fernandes, um dos primeiros europeus, se não o primeiro, a visitar o reino do Sião, à frente da primeira embaixada portuguesa, enviada por Afonso de Albuquerque. Esta missão diplomática, e a seguinte, chefiada por António Miranda de Azevedo, abririam caminho ao estabelecimento de relações comerciais permanentes com o reino do Sião e ao primeiro tratado de amizade e comércio entre um país europeu e uma nação do Oriente.

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Tal como outros estrangeiros residentes em bairros próprios, onde estavam autorizados a ter as suas actividades comerciais e a praticar os seus cultos, Fernão Mendes Pinto viveria ali durante algum tempo na condição de mercador — e de mercenário, vida em que muitos portugueses andaram pelo Oriente embarcados — e deixaria narrativa igualmente encomiástica das coisas que viu do reino do Sião, de que gabou a grande soma de riquezas e a sabedoria e bom governo que era costume nos soberanos siameses. Os elefantes que agora vemos passeando-se diante das ruínas dos templos levam turistas no dorso, tornaram-se uma vista trivial, sem eloquências de mistério. Quão longe se está daquela descrição que Fernão Mendes Pinto faz, numa carta, do passeio solene e oficial de um elefante branco sagrado: “Uma vez vi levar ao rio este elefante a banhar-se. Levava diante a dextro cento e sessenta quartaus, que são os ginetes daquela terra, e oitenta elefantes com cadeiras mui ricas, em que iam o capitão e senhores, e detrás vinha o elefante branco cercado de vinte e quatro sombreiros brancos de pé para lhe fazer sombra.”

Ayutthaya ocupa uma ilha rodeada pelo Chao Phraya e por um dos seus afluentes, o rio Prasak. Para conhecer cabalmente os vestígios históricos da cidade — cujo sortilégio é tanto coisa do passado como do presente — é preciso percorrer uma área bastante extensa, uma vez que, para além do parque histórico, há vários recintos arqueológicos dispersos pela área urbana — é curiosa esta convivência de épocas distintas, esta interpenetração contínua de espaços cronologicamente distintos. Os vestígios do Portuguese Settlement, onde chegaram a viver três mil portugueses, e onde podemos ver as ruínas da igreja de São Domingos e visitar um museu, ficam a sul, do outro lado do Chao Phraya.

A arquitectura sobrevivente da catástrofe de 1767 talvez ofereça uma pálida ideia do esplendor da cidade, mas ainda assim há bastante para sustentar a admiração dos visitantes — como o Wat Mahathat ou os três chedis do Wat Phra Di Sanphet, um complexo sagrado anexo ao antigo palácio real. Olhamos estes magníficos chedis e tentamos imaginar o muito que se perdeu — como um imenso Buda de dezasseis metros de altura coberto de ouro. Diz-se que o ouro levado de Ayutthaya pelos birmaneses foi usado na construção do Shwedagon Pagoda, o mais sumptuoso templo da Birmânia.

Dada a distância entre os vestígios monumentais (alguns estão situados fora da ilha, para lá do rio Chao Phraya, como o tardo-khmeriano Wat Chaiwatthanaram), alugar um tuk-tuk ou uma bicicleta é uma opção que pode ajudar a encurtar o tempo da estadia. Mas não se tenha dúvida sobre o preço desta pressa: vaguear pelo perímetro urbano (e fora dele) será uma fruição com outra valia, capaz de nos fazer seguir um percurso diacrónico, com sucessivos saltos no tempo, e imergir deleitosamente no aqui e agora da vida da cidade. O advérbio de modo não está a mais: no vaivém das visitas há jardins, canais e bancas de rua com deliciosa culinária.

É esse um capítulo em que Ayutthaya goza de merecidíssima aura, a de ser um dos mais apreciados santuários gastronómicos da Tailândia — o que, conhecendo-se a reputação do país em assuntos de cozinha, não é dizer pouco. À mesa fundem-se ingredientes e tradições gastronómicas de variadas origens: Índia, China, Birmânia, Japão e, até, portuguesa na doçaria. Ao longo e nas imediações da Uthong Road, a sul, junto ao Chao Phraya, há vários restaurantes onde podem ser saboreadas receitas locais. E há um mercado de comida de rua onde se pode tirar uma infalível prova dos nove da excelência da culinária de Ayutthaya; fica na Bang Lan Road e é uma montra caleidoscópica dos sabores da comida tailandesa.

Thonburi, a vida anfíbia

A bordo de uma das muitas barcaças que se movimentam rio acima, rio abaixo, de um extremo a outro da grande Banguecoque, o Chao Phraya transforma-se numa estrada panorâmica: nas margens erguem-se signos do que foi a vida siamesa ao longo de vários séculos, intercalados com os frenesis da actualidade, as extensas avenidas asfixiadas em tráfego, os viadutos dos automóveis e do skytrain, os arranha-céus do Sathon, o centro financeiro.

Banguecoque é uma das maiores e mais inquietas cidades do Oriente. Dia e noite, noite e dia, o rio está imerso em grande azáfama. Circular por esta monumental avenida de água nos barquinhos de carreira dos transportes públicos é uma das melhores experiências da capital tailandesa. Com a aragem do rio, bálsamo para o cocktail de calor e poluição, seguimos viagem, uma e outra vez, até às estações fluviais mais arredadas, já nos subúrbios da cidade, onde espontaneamente nos deixamos seduzir por uma típica ruralidade de subúrbio, pequenas hortas, árvores de fruta tropical, jardins singelos e colorido casario de madeira sobre estacas, meio anfíbio como as gentes que o habitam, herdeiras de gerações e gerações de vidas presas ao rio. Assim é, também, Thonburi, teia numerosa de bairros ligados por uma rede de canais, os khlong, fiadas de casas de madeira fixadas em estacas sobre a água, com varandins pintados de cores vivas e vasos de flores e plantas, e quintais com bananeiras ao longo de canais estreitos. E barcos-cozinha onde podemos saborear uma refeição servida num cestinho de folhas de bananeira entrelaçadas ou tomar um café ou um chá sem precisarmos de pôr os pés em terra.

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A escolha de Thonburi para sede do reino, um ano depois da queda de Ayutthaya, justificou-se pela infatigável ameaça birmanesa. O reino de Thonburi, fundado por um militar entronizado (parece uma fatalidade tailandesa) duraria uns quinze anos. Foi um período agitado, mas decisivo, durante o qual o velho Sião, guiado pelo general Taksin (que contou, como os seus antecessores, com mercenários portugueses) teve que consolidar a sua independência enfrentando múltiplas ameaças: dos vizinhos birmaneses de Pegu, do reino khmer do Camboja e de uns tantos senhores feudais.

Depois de Thonburi, Rama I, fundador da actual dinastia no poder, transferiu a capital para a margem leste do Chao Phraya em 1782 (e também muita escultura religiosa de Ayutthaya e Sukhothai) e a anterior capital acabaria por se amalgamar na grande cidade de Banguecoque. O novo reino, provisoriamente designado por Rattanakosin, foi rebaptizado em 1948 e ficou a chamar-se Tailândia.

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De Thonburi se herdou sobretudo a resistência, o engenho da reorganização política, o fôlego nacional. E o Wat Arun, o templo que é um dos mais celebrados ícones de Banguecoque e que avistamos ao navegarmos pelo Chao Phraya. O rio, sempre o rio. O Chao Phraya, um íman poderoso, sem o qual o Sião não se teria podido erguer, um condicionante do devir histórico dos tailandeses. Como escreveu Miguel de Unamuno: “Os rios podem mais que os reis”.

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